Tadashi Sawamura estava à altura de sua versão dos mangás e animes? Mais do que você imagina!
Venho praticando artes marciais – karate, especificamente – há mais de 10 anos. Posso dizer que sou relativamente dedicado para um amador, graças, principalmente, ao meu bom professor. Tradicional e das antigas, ele conhece a trajetória de um sem-número de lutadores, suas qualidades e fraquezas dentro dos seus estilos. Isso tem seu lado divertido – não raramente ele se vê obrigado a desmistificar certas lendas que rondam as artes marciais, principalmente de lutadores com qualidades “sobre-humanas”; desnecessário dizer, muitas delas oriundas da cultura pop. Raramente um lutador real esteve à altura de sua lenda. Este não é o caso de Hideki Shiraha – que você conhece como Sawamu, O Demolidor.
Round 1: O Demônio do Chute
Ok, vamos dar algum contexto. Você, amigo leitor mais “experiente”, provavelmente assistiu ou já ouviu falar do anime Sawamu, O Demolidor, que foi exibido aqui no Brasil pela Record e pela Gazeta nos anos 70. Ele fez parte de um lendário bloco de animes que apresentou outros grandes personagens para o público, como o Fantomas, de Ichigo Suzuki (escritor) e Takeo Nagamatsu (ilustrador), e Menino Biônico, de um tal de Osamu Tezuka. Apesar de possuir apenas 26 episódios, a série foi exibida até 1982, porque o público daqui simplesmente pirava na história de redenção desse lutador de estilo ainda pouco conhecido: o kickboxing, chamado aqui na época de “chute-boxe”.
O anime era baseado no mangá Kick no Oni (“Demônio do Chute”, em português), escrita por Ikki Kajiwara e ilustrada por Kentaro Nakajou, que foi publicado na Shonen King, da editora Shonen Gahosha, uma das grandes do mercado antes da ascensão definitiva da Shonen Jump. O amigo leitor mais chegado em mangás provavelmente conhece Kajiwara pelo seu trabalho mais conhecido, Ashita no Joe, que ele realizava junto com o ilustrador Tetsuya Chiba. O mangá foi publicado numa pancada só durante 1969, enquanto sua adaptação para anime – devido ao sucesso da HQ – se estendeu entre 1970 e 71.
Apesar da curta duração, o anime fez um sucesso estupidamente grande aqui, não apenas popularizando o então ainda desconhecido kickboxing no Brasil, mas de fato levando a uma explosão de academias do estilo e importação de professores para ensiná-lo. Isso chamou a atenção do programa Esporte Espetacular, que fez questão de apresentar a novidade em primeira mão para o público. Virou febre, claro. Chegando em terras brazucas, Sawamura: The Demon of Kickboxing passou pelo devido tratamento na nossa exegética Escola de Tradução de Títulos, tornado-se Sawamu: O Demolidor.
A aposta no anime era tão grande que ele ganhou uma canção de abertura exclusivamente brasileira – que se tornou uma peça de nostalgia inestimável para os fãs. O jornalista Sergio Martorelli confirmou uma informação antiga, a de que essa canção era de Sá, Rodrix e Guarabira. Foi realmente uma parceria deles com o compositor Toré, autor da letra. Com toda simplicidade do mundo, ela captura com perfeição o espírito da série.
Round 2: Ele se julgava o demolidor
O mangá e o anime originais, por sua vez, são uma adaptação da trajetória do artista marcial Tadashi Sawamura, que abalou o mundo das artes marciais entre os anos 60 até 1977, quando se aposentou dos ringues. Como dissemos lá em cima, é essencialmente uma história de redenção: Sawamu está no ringue, enfrentando um forte adversário, numa difícil luta.
Após o confronto, somos remetidos ao passado através das lembranças de Sawamu sobre sua trajetória até chegar àquele momento. Apesar de ser um mestre do karate, ele era um lutador bastante arrogante, que se considerava invencível. Um dia, o lutador é abordado pelo empresário de boxe Noguchi, que pôs à prova a sua superioridade no karate. Experiente e rodado, o empresário circula entre várias modalidades de artes marciais, conhecendo seus pontos fortes e fracos – sempre da perspectiva do entretenimento, claro – além ter experiência em lidar com a personalidade forte de vários lutadores. Noguchi guardava um carinho especial pelo muay thai, modalidade pela qual se apaixonara quando foi promover um torneio na Tailândia.
Por algum motivo, ele entendeu que Sawamu tinha talento pra coisa. Mas, a princípio, o empresário não conseguiu mostrar ao karateca as vantagens do muay thai. Porque, obviamente, o japonês estava bastante satisfeito com suas habilidades. Não muito tempo depois, busca Sawamu novamente, e propõe uma luta entre ele e um lutador de muay thai. O arrogante lutador derrota facilmente o oponente e, mais uma vez, comemora a superioridade do karate. O que Sawamu não sabia era que seu adversário era apenas um amador.
Noguchi então decide subir a barra – só que um pouco demais. Desta vez lutando contra um oponente do mesmo nível, chamado Soman, Sawamu é brutalmente derrotado, e acaba sendo hospitalizado. Aproveitando esse momento de fragilidade, Noguchi volta a propor que Sawamu adote o muay thai. Finalmente, recebe a resposta afirmativa do agora ex-karateca – o que o leva a ser visto como um traidor do karate, principalmente por Shibata, seu melhor amigo e principal admirador.
Após um árduo treinamento, que se tornou a menina dos olhos de 11 entre 10 lutadores no Brasil, Sawamu retorna aos ringues, agora mais calmo e humilde. Mesmo nessas condições, entretanto, o lutador enfrenta alguns adversários piores que os do ringue: o preconceito contra o seu estilo desconhecido de luta e a pouca credibilidade do seu nome após aquela grande derrota.
Essa resistência era um problema para o negócios. A saída encontrada por Noguchi foi a de rebatizar o estilo misto do lutador para emplacá-lo no Japão. Depois que Sawamu derrota alguns lutadores tailandeses com um característico chute alto, fica decidido que o nome do estilo seria kickboxing. Um dos momentos mais nostálgicos da série mostra Noguchi e Sawamu treinando enquanto repete “chute-boxe” como um mantra.
Começa então a batalha para a volta de Sawamu ao topo. Endo, seu novo técnico, luta fora dos ringues em busca de patrocínio e de alguém que acredite naquele estilo recém criado. Eles conseguem convencer a emissora de TV TBS a transmitir a luta de revanche entre Sawamu e Soman. Mas a coisa muda de rumo quando Soman é derrotado por um lutador chamado Switton em apenas um assalto, e se aposenta. Conseguiria nosso protagonista sair vitorioso?
Bom, óbvio que sim. Ele apanha pra diabo, mas consegue sua primeira vitória. Primeira de uma longa sequência. No ringue contra Bokotton – o Homem de Ferro, Sawamu criou o sua assinatura: o Salto no Vácuo com Joelhada. As consecutivas vitórias são apenas interrompidas contra Ponshai Sheriakan – O Lagarto de Fogo (só os nomes mais legais), um lutador lendário e ardiloso, cuja luta contra Sawamu rende um empate. Nada que apague o brilho do kickboxer.
Toda essa história foi baseada na vida de um lutador real. Mas o Tadashi Sawamura de carne e osso estava à altura de sua versão animada?
Estava. E não pouco.
Round 3: Da natureza, o rei
Uma das reflexões curiosas a respeito de Kick no Oni é essa: quando Kajiwara decidiu escrever sobre a história de Sawamura em 69, ele estava já a pleno vapor com Ashita no Joe. Então, por que dividir a atenção de um mangá de tamanho sucesso com outro de temática similar? Porque a história é realmente espetacular. No geral, Kajiwara foi bastante fiel ao lutador real – a trajetória de lutador e personagem são bastante similares.
Nascido Hideki Shiraha em 1943 na Manchúria, região chinesa então sob ocupação japonesa, Sawamura retornou ainda jovem para o arquipélago. Desfrutou de uma juventude estável, e logo cedo começou a estudar karate. Ele já demonstrava talento para as artes marciais, passando o rodo em todo tipo de troféu durante sua época de estudante colegial e universitário. Embora não se possa dizer que, tal qual sua versão animada, ele era alguém arrogante é justo pressupor que, com um currículo invejável ainda jovem, ele fosse alguém bastante auto-confiante.
Em 1963, houve uma competição entre instrutores japoneses e tailandeses, um torneio de karate vs. muay thai, com o objetivo de promover um intercâmbio. O Japão venceu a série, mas dois participantes, Osamu Noguchi e Tatsuo Yamada, ficaram bastante atraídos pela técnica tailandesa, e quiseram criar uma modalidade de luta full-contact similar ao que eles haviam visto no muay thai local. Isso levou ao desenvolvimento do que se conhece como kickboxing.
Aqui cabe um pouco mais de contexto. Porque dois karatecas queriam criar uma modalidade full-contact de uma arte marcial que… bem, já devia ser full-contact?
INTERVALO: Aula de história!
Pelo seguinte: as primeiras competições de karate só aconteceram no Japão na década de 50. Os tradicionais sensei da arte eram veementemente contra competições desportivas da arte – isso inclui o próprio sensei que levou o karate para o Japão já em 1922, Gichin Funakoshi, visto que o karate não é uma arte exatamente do Japão, mas do arquipélago de Okinawa, que mantém uma relação bastante elusiva com seus conquistadores. De fato, quando Funakoshi é convidado para demonstrar o karate no Japão, ele faz questão de repensar a arte numa versão mais próxima da mecânica dos japoneses, sabendo que sua cultura era distinta da deles. Assim nasce a escola de karate conhecida como shotokan.
Entretanto, essa é apenas uma de muitas escolas do karate. Porque essa arte marcial, apesar de não ter nem um século no Japão, é mais do que centenária na ilha tropical, tendo se desenvolvido em diversas linhagens. O surgimento do karate se deu justamente como uma forma de os camponeses locais se defenderem após a proibição do porte de arma pelos seus conquistadores japoneses no século XVII. Portanto, para todos os efeitos, a prática do karate era coisa muito séria – efetivamente, uma arte de guerra. É atribuído ao sensei Funakoshi um dito que resume muito bem sua interpretação do karate: “um golpe, uma morte”.
E se isso parece um preciosismo por parte de um velho sensei, a história provou que ele estava certo. Depois da Segunda Guerra, os americanos descobriram o karate em Okinawa, e quiseram fazer com ele a única coisa que sabem fazer direito: espetáculo. Já nos anos 50, os primeiros campeonatos locais entre clubes e universidades foram organizados. Lutava quem queria. As regras eram, no mínimo, meio frouxas. Não havia qualquer restrição de técnica, a não ser aquelas que eram obviamente fatais – como quebra de pescoço, etc. E se parece exagero, saiba que nos katas, os exercícios formais do karate, esse tipo de técnica é observada entre os praticante mais avançados. De novo – era uma arte de guerra. Esses cabras eram treinados para terminar um combate da pior forma possível, se necessário.
O resultado desses primeiros campeonatos? Carnificina, óbvio. Sem nenhum tipo de freio, esses lutadores sentavam a mão pra valer. O que levou um número altíssimo de lesões gravíssimas, mutilações e deformações – mortes também chegaram a ser registradas. Não era bem o que os americanos – muito menos os organizadores – estavam esperando. A partir daí, e com o falecimento dos sensei mais antigos, o karate como esporte passou por uma reformulação. Ele se tornou semi-contato – ou seja, apenas o toque é permitido, sem provocação de lesões – e uma série enorme de técnicas e golpes potencialmente perigosos ou fatais foram proibidos, para preservar os atletas. Essa era a modalidade praticada por Shiraha, um karate mais voltado ao aspecto desportivo, privado de seu potencial mais destrutivo mas bastante popular entre atletas.
Alguns praticantes como Noguchi sentiam falta dos combates mais intensos, mas sabiam bem o que poderia acontecer se os karatecas começassem a soltar a mão de novo. O meio-termo foi o kickboxing: manteve-se a proibição aos golpes deliberadamente perigosos, mas o impacto dos socos e chutes do karate estava liberado. Dessa forma, um aspecto do karate antigo seria preservado na forma de competições. Shiraha entra na história novamente nesse ponto, quando, após acreditar que já havia atingido o auge naquela modalidade de karate, pergunta para seu ídolo sua opinião sobre começar a lutar nessa nova modalidade.
FIM DO INTERVALO: De Shiraha para Sawamura
A resposta de Noguchi foi decepcionante para o jovem karateca: a modalidade desportiva na qual ele se destacava não provia o treinamento necessário para vencer uma luta full-contact. Noguchi temia pela integridade física de Shiraha se este resolvesse pisar na Tailândia para desafiar lutadores profissionais de muay thai. Desnecessário dizer que foi exatamente o que Shiraha fez.
A avaliação de Noguchi era baseada em observação e vivência – e estava absolutamente correta. O amigo leitor precisa entender que não se trata de um ser melhor que o outro, mas apenas que o karate desportivo e o tradicional tem propósitos diferentes. Um exemplo seria comparar futebol de campo com o de salão. É o mesmo esporte, mas dificilmente atletas de cada modalidade conseguem fazer a transição mantendo o mesmo nível de performance.
Shiraha, entretanto, não quis saber. Fez o que foi dito para não ser feito. E aconteceu o que foi dito que iria acontecer. Shiraha perdeu de maneira espetacular contra um lutador de thai no segundo round, levando para casa três costelas quebradas. Foram necessários 16 meses para ele se consertar. Nesse ponto, a narrativa da animação e do mangá são praticamente idênticas aos eventos da vida real. Entretanto, a partir daqui surgem algumas diferenças. Completamente desmotivado, Shiraha quis se dedicar ao jujutsu – a antiga arte de combate corpo-a-corpo dos samurais que deu origem ao judo e ao jiu-jitsu. Mas Noguchi via talento no rapaz, e insistiu para que ele treinasse o seu kickboxing.
Shiraha cedeu, e passou por um longo período de treinamento com Noguchi. A parte interessante é que, embora Noguchi tenha sim assimilado alguns elementos do muay thai, sua arte ainda era basicamente karate. Mas ele não chamava de karate, porque os sensei de karate ainda tinham muita resistência com uma modalidade tão agressiva, que eles tanto haviam se esforçado para tornar mais palatável. Então, kickboxing continuou sendo kickboxing e karate continuou sendo karate… embora fossem em essência a mesma coisa. Quem admirava o kickboxing era ninguém menos que Masutatsu Oyama, fundador da linhagem kyokushin de karate – e que, curiosamente, também mantém uma relação elusiva com as modalidades desportivas de karate… embora, novamente, sejam essencialmente a mesma coisa.
Fato é que Shiraha treinou firme, e seu estilo de luta mudou completamente. Ele voltou a Tailândia como um novo homem – acompanhado de um novo nome para ilustrar tal transformação: Tadashi Sawamura. Sawamura venceu sua revanche contra o lutador tailandês. Mas esta seria apenas a primeira de uma longa carreira de vitórias.
Round 4: Mas não sabia que seu mundo era pequeno
Sawamura tem hoje 75 anos de idade. Vive de uma concessionária de automóveis no Japão. Ensina karate para crianças em seu tempo livre. Para quem olha de longe, é apenas mais um simpático senhor japonês, tocando sua vida.
O que realmente não condiz com o status devastador que atingiu como lutador de kickboxing em sua carreira profissional. Competindo entre os pesos leve e médio durante o decorrer de suas lutas – e sagrando-se campeão em ambas – Sawamura atingiu números que chegam a ser estúpidos de tão grandes. Seu cartel oficial conta com 241 lutas, sendo 232 vitórias, 4 empates e 5 derrotas (uma delas, claro, sendo aquela antes da sua mudança de treinamento). Um número tão bizarro de combates e vitórias já seria o bastante para tornar qualquer um numa verdadeira lenda. Mas o que choca é um outro dado: dessas 232 vitórias, 228 foram por nocaute.
DUZENTOS. E VINTE. E OITO. FUCKING. NOCAUTES.
É um aproveitamento cretinamente alto de 94,60% de nocautes por combate. Se o amigo leitor não tem real noção do que esse número significa, aqui vai uma breve base de comparação: o lendário Rocky Marciano, um dos maiores pesos-pesado de todos os tempos do boxe tem um aproveitamento de 87,76% – isso com 49 lutas oficiais nos anos 50. E não me venha com essas churumelas de “quem ele enfrentou”, blablabla. É a mesma lógica aplicada a qualquer atleta lendário: se fosse fácil, outros teriam feito. Quem mais chega perto desse rendimento é outro kickboxer: Branko Cikatic, com 91% de suas vitórias obtidas do jeito mais rápido.
No meio dessa quantidade absurda de nocautes, Sawamura ainda dava show. Embora o Sawamura da vida real não criado seu icônico golpe (é uma técnica prevista tanto no karate tradicional quanto no muay thai) como acontece no mangá e anime, podemos muito bem dizer que isso só torna o lutador real ainda mais fantástico: aplicar o salto no vácuo com joelhada (shinku tobi hiza geri) numa luta pra valer é um risco colossal, que expõe completamente o atleta. É uma daquelas técnicas que se treina muito para se usar uma vez na vida, em circunstâncias muito específicas – certamente não quando tem um sujeito treinado e focado no outro corner esperando seu primeiro erro para acabar com você. O fato de Sawamura ter tornado essa técnica sua assinatura só demonstra o tamanho da autoconfiança e da habilidade desse lutador.
Tadashi Sawamura se tornou tão popular pela sua carreira, devidamente sacramentada por um ótimo mangá e um ótimo anime, que se tornou um dos poucos atletas do Japão na época a se tornar uma celebridade pop. Ele chegou a participar como ele mesmo em um episódio de O Regresso de Ultraman, como também virou nome de pokemon: o que vocês conhecem aqui como Hitmonlee na verdade se chama originalmente Sawamura. Os tradutores do Ocidente trocaram o nome para fazer referência – obviamente – a Bruce Lee, muito mais conhecido por aqui. Francamente? Queremos o original!
Não obstante, ele não apenas recuperou o respeito dos karatecas, como se tornou referência para praticamente todo artista marcial. Mesmo modalidades mais recentes como o MMA podem traçar uma parte de sua história aos espetáculos de Sawamura – embora nenhum lutador de nenhum estilo ainda tenha atingido os números violentamente altos da carreira do mestre de karate, muay thai e kickboxing.
Final: Vitória!
De Tadashi Sawamura. De Hideki Shiraha.
E Sawamu, O Demolidor!