Star Trek Discovery volta à falar sobre sentimentos e relacionamentos em Lethe – mas não do jeito certo
O episódio 6 da primeira temporada de Star Trek Discovery, Lethe, abre com a seguinte frase: “Ignorância pode ser benéfica em tempos de guerra”. Ok, é um universo vasto, e sempre existe alguém com uma mente tacanha de um civilização ainda não intelectualmente desenvolvida capaz de corroborar com uma bobagem como essa.
O problema é que quem diz essa frase é Sarek, pai de Spock e um dos mais notáveis vulcanos no cânone de Star Trek. Um vulcano. Louvando a ignorância. Em Star Trek. Mas calma, amigo leitor. Essa ladeira abaixo está só começando.
O episódio é chamado Lethe, uma possível referência ao mítico rio grego do esquecimento. O que deveria ser uma referência às vagas memórias do passado dos protagonistas do episódio, mas acaba servindo como um irônico chiste, visto que os roteiristas aparentemente cagaram uma montanha para toda a lógica interna de Star Trek em prol da sua própria contribuição para o cânone da franquia.
Incidentalmente, “lógica” – ou a falta dela – é o frouxo pilar e o problema de todo o episódio. Após a inacreditável declaração dada por Sarek – reforçamos: um vulcano fazendo um apelo à ignorância – o personagem de James Frain segue com um outro vulcano para uma conferência com klingons em nome da Federação, em uma tentativa de mediar a paz.
Na sequência, o vulcano aleatório se apresenta com um extremista lógico, e comente suicídio se explodindo, deixando Sarek à deriva e ferido dentro de uma perigosa nebulosa. Burnham, devido ao seu vínculo com seu pai adotivo, consegue sentir sua dor. Lorca então manda Tyler, já integrado à tripulação da Discovery, junto com Tilly para escoltar Burnham em direção à nebulosa para salvar Sarek.
Enquanto isso, na própria Discovery, Lorca é interpelado pessoalmente pela Almirante Cornwell (Jayne Brook) por sua decisão aparentemente imprudente em relação a situação – fator exponencialmente aumentado pelas decisão arriscadas anteriores do Capitão. Ela questiona a capacidade de comando dele, afirmando estar preocupada em relação à possíveis consequências do eventos da Buran sobre ele.
É realmente uma grande decepção. Depois de um começo relativamente fraco e incógnito, Star Trek Discovery foi aos poucos crescendo, e os dois últimos episódios foram notavelmente melhores que os primeiros – ao ponto até mesmo de lembrar algo como Star Trek. Talvez por isso a impressão de um queda tão brusca seja causada por Lethe.
Novela genérica
É até difícil começar a descrever o tamanho da bagunça que é esse episódio – e, ademais, também não é necessário. Já que estamos aqui para fazer um texto crítico, então seremos críticos: Star Trek Discovery precisa decidir se quer ser Star Trek, ou se quer ser uma novela genérica no espaço. Não dá para ser os dois.
O foco do episódio é desenvolver ainda mais o relacionamento entre Sarek e Burnham, e jogar ainda um pouco mais de luz sobre o passado de Lorca. Até aí, sem problema. Mas a maneira como o episódio progride apresenta problemas que vão de grave até pior em literalmente todas as cenas. Nada se salva. A começar pelo brutalmente desastrosa representação dos vulcanos.
Não me venha com esse cretinismo de que “eles tem personalidades individuais, não uma mente coletiva, e podem pensar diferente”. Uma das coisas mais claras na cânone de Star Trek é que os vulcanos, apesar de suas personalidades individuais – que levam a costumeiras discordâncias entre si – eles são seres lógicos acima de tudo.
Não existe lógica na xenofobia. Não existe lógica no extremismo. Chamar a si próprio de “extremista lógico” é como chamar a si mesmo de “nazista ponderado” – não dá para abraçar uma ideologia e ainda ser lógico, pois é exatamente essa a definição de ideologia: um abandono deliberado da razão e das faculdades intelectuais em prol de uma maneira pré-formatada de pensar. Não existe nada menos vulcano do que isso.
Mas tem coisa pior. A organização e execução da missão de resgate é um pesadelo impensável. Nenhum Capitão da Frota Estelar em sã consciência faria o que Lorca faz aqui. E não estamos sequer comparando com os maiores da história, como Picard. Nem Capitães recentemente alçados ao posto colocariam um oficial que acabou de ser resgatado de uma prisão klingon – a qual ninguém sabe como ele realmente sobreviveu – no cargo de chefe de segurança.
Mas tudo bem, afinal, se Lorca pôde colocar uma completa imbecil, Landry, sem nenhum respeito pela própria vida no cargo, então nada mais sensato do que colocar um sujeito que você conheceu a uma semana em circunstâncias no mínimo duvidosas em uma posição essencial e crítica da nave mais preciosa da Frota. A palavra de ordem em Lethe é: prudência.
Aliás, falando no novo chefe de segurança, ele acaba servindo muito bem para um propósito específico: demonstrar o quanto os escritores realmente querem que você goste desses personagens. A despeito de, tal qual Lorca em relação a Burnham e Tyler, você tê-los outro dia. Esse talvez seja o buraco mais intensamente incômodo até aqui em Star Trek Discovery: nós não nos importamos com eles ainda, porque nós não os conhecemos.
A trajetória do resgate de Sarek é prova cabal disso. O episódio deveria ter sido emocionalmente intenso, mas as intermináveis pataquadas minaram qualquer chance disso. Nós não tivemos tempo de nos envolver com Burnham e com Sarek – não sabemos das dificuldades do seu relacionamento e da real história por trás dele.
Lethe deveria jogar luz sobre isso, mas acaba projetando uma sombra imensa, e que agora vai ser o sumo final do episódio e um problema ainda maior para a presença de Star Trek Discovery no cânone da série: Spock. A ideia aqui era mostrar as difíceis decisões de Sarek por Burnham ser humana – reforçando: além de tudo, agora os vulcanos são aparentemente xenófobos – mas só o que fica é o fato de que Spock, sequer aparecendo, ainda é um personagem mais importante do que a protagonista da série.
Altamente ilógico
Essas questões mal trabalhadas de relacionamento na série ficam ainda mais destacadas (sim, eu disse que ia ficando pior) durante o resgate de Sarek. Porque Tyler, que não conhece Burnham em absoluto, decide dar conselhos a ela sobre como realizar sua conexão com Sarek.
Que ele não conhece. Enquanto ele está pilotando a nave. Que ninguém está fazendo. Enquanto eles voam por uma nebulosa entupida de “material radioativo”. Que foi dito aos três que era explicitamente perigosa, mas aparentemente não tanto a ponto de não parar a nave para ter uma conversa rápida sobre sentimentos. Do novo chefe de segurança. Que chegou na nave uma semana antes. Depois de ter sido torturado. Que foi escolhido por um Capitão visivelmente sequelado. Que é Capitão da melhor nave da Frota, mas aparentemente não o bastante para não ter uma babá 24/7 em cima dele.
Entenderam o tamanho da ZONA que foi Lethe? Não, não entenderam, porque eu nem comecei a falar sobre o fato de que Sarek – um vulcano – objetivamente MENTIU para sua filha adotiva por um motivo absolutamente cretino. E não vamos sequer entrar no mérito de uma lacuna ainda maior fica de resultado; porque, se afinal de contas, a família de Sarek é tão importante e esses laços tão tensos e explícitos… onde está Sybok? Lembra dele? Único vulcano pirado de que se tem (ou tinha) conhecimento? Pois é. Lhufas.
Das pouquíssimas coisas que se salvam nessa deplorável e desperdiçada hora de Star Trek estão a ascensão de Kol enquanto líder klingon – finalmente, começa a se desenhar um vilão de respeito; a descrição da óbvia síndrome pós-traumática da qual Lorca sofre, acrescentando mais uma camada interessante ao personagem; e “viagem” de Stamets, que está claramente alterado após sua experiência com os “cogumelos espaciais”. Eu sei como essa última parte soou.
E eu vou deixar assim, porque esse episódio não merece meu respeito. Porque isso não é Star Trek.
Não deixe de conferir nossa crítica dos episódios anteriores!