Sintonia se destaca pelo equilíbrio entre pretensões e boa narrativa
Há alguns anos, quando li que a plataforma Netflix tinha o projeto de uma série sobre funk capitaneada por por um cara que usa o pseudônimo de Kondzilla para assinar seus trabalhos e que, até então, eu só conhecia por ver o logo dourado em alguns videoclipes, confesso que torci o nariz. As séries brasileiras ainda não empolgam como as americanas (O Justiceiro), e europeias produzidas pela plataforma.
De lá para cá, acabei tendo um contato maior com a trajetória do diretor e produtor Konrad Dantas, o homem por trás de Kondzilla, o suficiente para ver que, além de ter tino comercial, ele também é um batalhador. Apesar de não ser um admirador do funk brasileiro, tenho que admitir que ele soube construir seu espaço e, não à toa, seu canal é o maior de música do YouTube, o único a ter mais de 50 milhões de inscritos no Brasil e o terceiro maior do mundo.
Ouso dizer que Sintonia é a melhor produção nacional da Netflix, à frente inclusive de outras de maior prestígio como a ficção científica 3%, a começar pela boa trama, que narra a jornada de três jovens que moram numa comunidade de São Paulo, ou como eles mesmos chamam, na “quebrada”. Doni (Mc JottaPê) tem uma vida mais confortável por conta do pai, dono da mercearia do bairro. Seu sonho é ser um MC (mestre de cerimônias) e cantar nos bailes da comunidade. Ele foi criado como irmão de Rita (Bruna Mascarenhas) e Nando (Christian Malheiros) e por isso a proximidade e cumplicidade entre eles é transparente.
O estigma de filmes e séries sobre favela podem levar ao engano de que tudo é melodrama sobre a opressão sofrida por pessoas menos favorecidas financeiramente. Mas o primeiro grande acerto de Sintonia é não ser um manifesto panfletário. Seus personagens têm escolhas e as fazem conscientemente. Isso dá a eles camadas, afastando-os dos estereótipos. Apesar de existir o fator sociedade opressora, ele não é o principal conceito a ser explorado. Os personagens são sonhadores, mas entendem as regras do jogo. Seu dilemas não são simplesmente classistas. Nisso a série ganha de suas pares, pois traz pessoas críveis, sem vieses e sem ilusionismos.
Um retrato da margem
De todas as histórias, a de Nando é a que chama mais atenção. Apesar de bastante jovem, já é pai, casado e envolvido com o tráfico. Sua ambição não é caricata. Nando tem a indignação e o foco de quem sabe de onde vem e que, por sua condição, sabe que são poucas as chances de crescer profissionalmente na periferia. Ele abraça, mesmo que algumas vezes relutando, o destino que escolheu. De longe, é o melhor arco da série. Rita, no entanto é o personagem com uma trajetória menos arquetípica. Órfã de mãe, ela sempre se virou e é bastante madura, mas é também o personagem com maior potencial de autossabotagem, por conta de sua personalidade impulsiva.
As atuações dos três jovens atores são seguras e convincentes. Os diálogos são muito bons e críveis, dando a sensação de estarmos realmente em uma comunidade periférica. Mesmo que alguns personagens comecem a trama um pouco abaixo do nível de atuação dos três, as coisas vão se nivelando com o andar dos episódios.
A série de 6 episódios é produzida por Los Bragas, e apesar de usar o nome de Kondzilla para chamar a atenção como criador da história, quem assina os roteiros são Guilherme Quintella, Duda Almeida, Thays Berbe e Pedro Furtado.
Nos quesitos técnicos, Sintonia apresenta uma trilha sonora muito bem produzida, uma fotografia colorida na medida certa para apresentar o mundo dos bailes, sem necessidade dos filtros de cor sombrios que vemos tanto hoje em dia. Alguns planos são bem elaborados, mas não tiram a atenção da dramaturgia, e a edição é transparente, sem truques.
Por isso tudo, é possível assegurar que Sintonia é uma série sóbria, e até elegante, que deve atingir as pessoas pelas suas histórias, que são seguras e envolventes, e não pelo drama barato ou ideológico. Vale muito a pena dar um pulo nessa quebrada.