Doug Funnie foi um personagem mais relevante do que você imagina
Este mês, a estreia de Doug Funnie na TV gringa fez 26 anos. Normalmente, celebramos os anos cheios desse tipo de evento. Quer dizer, perdemos a comemoração dos 25 anos e estamos adiantados para os 30. Mas Doug parece ter um bom lugar na nostalgia de toda uma geração, e isso deve merecer alguns comentários.
Mais do que isso, Doug nos veio embalado em um pacote muito específico: o da programação infanto-juvenil da TV Cultura, que o trouxe da Nickelodeon para o Brasil em 1994. E esse contexto também merece um tanto de nossa atenção. Não só porque essa grade, por si só, mora no coração de muitos, mas também pelo que ela fez por Doug.
Entre vínculos afetivos e análises conscientes, vejamos a ascenção e a queda (sim, teve queda) do menino que ouvia “Tofu matador”, criou o Homem-codorna e escrevia religiosamente em seu diário.
Doug na TV dos anos 90
Há alguns anos, em São Paulo, o Museu da Imagem do Som abrigou uma exposição sobre Castelo Rá-tim-bum. Foi quando gente que nunca tinha ouvido falar no MIS começou a se acotovelar entre ingressos esgotados, filas enormes e preces para estenderem o evento (obrigado, MIS, por ouvi-las). Estávamos todos ansiosos por ver cenários, figurinos e relatos daquele que talvez seja o programa infantil quintessencial da TV Cultura.
Eu diria mais: o melhor programa infantil que o país já produziu (sim, eu citei Tíbio e Perônio.)
A questão é que, mais de duas décadas depois de conhecer o castelo, quisemos ser engolidos por ele e por toda a nostalgia que ele comporta. Já adultos, pudemos compreender o esforço da emissora em construir um universo consistente, que não tratava a criança como uma pseudopessoa imbecil que engoliria qualquer coisa minimamente colorida.
Vejam: não quero demonizar os blocos matutinos da Globo e do SBT, nem a extinta Manchete com seus animes e tokusatsus. Quem viveu essas grades sabe o que havia de bom em cada canto. Mas precisamos admitir, em retrospectiva: a curadoria da TV Cultura era invejável.
A emissora simplesmente fez Rá-tim-bum, Glub Glub, Mundo da Lua, Cocoricó, Confissões de adolescente. Trouxe uma tonelada de produções de qualidade que as grandes emissoras dificilmente trariam, como O mundo de Beakman, Anos incríveis, As aventuras de Tintin, Animais do Bosque dos Vinténs, A Pedra dos Sonhos, desenhos de todas as partes do mundo.
(Uma alma iluminada compilou vários desenhos apresentados dentro do programa Glub Glub. Pegue a caixinha de lenços e prepare-se para tomar um murro de nostalgia.)
Em dado momento, selecionaram Doug. Nas mãos de outra emissora, poderia ter sido só mais um desenho, socado entre outros em um programa matinal. Mas na Cultura, por muito tempo, Doug simplesmente encerrava o bloco infanto-juvenil noturno. Como se a grade espelhasse uma progressão etária, o desenho apelava em particular ao público pré-adolescente, mantendo o padrão de qualidade geral.
(A abertura do desenho, recheada de efeitos vocais. O ator responsável por tudo foi Fred Newman, que também fez a dublagem original dos personagens Costelinha, Skeeter e senhor Dink – além de ter no currículo as vozes das criaturas de Gremlins.)
Doug rumo ao desconhecido
Jim Jinkins, criador de Doug, diz que a mensagem principal da animação é o valor da honestidade. Ainda assim, quando nos lembramos do desenho, outras cenas devem ocorrer: Doug cantando “Patti, você é a minha maionese”; ele e Skeeter tentando chegar ao show dos Beets; Roger Klotz enchendo o saco de toda a escola.
Isso porque todas aquelas situações faziam sentido para nós, que, como Doug, orbitávamos os 11 anos de idade. Eram absolutamente relacionáveis e não nos vinham como um manual para a vida ou algo condescendente assim. Simplesmente nos vinham, com uma genuína fidelidade ao que acontece nessa fase.
No primeiro episódio, a família de Doug se muda para a cidade de Bluffington. Fora seus pais, sua irmã Judy e o cachorro Costelinha, o garoto não conhece nada nem ninguém ali. Exatamente como entramos na adolescência quase como se fosse uma outra vida, Doug precisa se adaptar àquele entorno.
A própria cidade de Bluffington é de uma construção muito eficiente. Guardadas as proporções, ela é orgânica como a Springfield dos Simpsons. Tem seu point jovem, o Honker Burger. Tem vizinhos esquisitos, como os Dink ou os Valentine. Tem um prefeito canastrão, com o próprio tema musical de campanha. Tem um orgulho local por beterrabas. Tem uma família rica influente, os tradicionais Bluff. E tem uma escola com um vice-diretor detestável, o senhor Bone.
Melhor do que isso: a cidade é habitada por personagens tridimensionais. O fato de eles serem todos coloridos é apenas um bônus interessante aqui. O que realmente faz a diferença é que eles dizem ao público que nesse mundo novo, que se abre com a adolescência, nada é tão simples quanto parecia na infãncia.
Doug costuma se ver cercado de adversidades e dilemas inéditos: de escolher corte de cabelo até achar dinheiro na rua e não saber se o devolve ao dono. Quer dizer, havia coisas que aos adultos parecem grandes bobeiras, mas que aos jovens podem tirar o sono. Simultaneamente, havia questões éticas que muito marmanjo não saberia resolver.
É aí que penso que Doug vence seu colega de Nickelodeon, Arnold (o de Hey Arnold! mesmo). Enquanto o cabeça de bigorna quase sempre sabe o que está fazendo, ouve jazz e pode ensinar sobre a aerodinâmica de um carro alegórico (sim, isso aconteceu), Doug precisa elaborar o que acontece ao seu redor. Seja escrevendo em seu diário, desenhando ou simplesmente imaginando situações – às vezes projetado em heróis como o Homem-codorna, o espião Smash Adams ou o aventureiro Race Canyon.
Os demais personagens seguem essa tendência. São jovens complexos, cada qual em sua medida, inclusive quando assumem papeis que tendem ao clichê. Por exemplo, o antagonista Roger: ao longo dos episódios, vemos seus traços de insegurança. Descobrimos que sua família passa por problemas. E assim, mesmo pré-adolescentes, aprendemos que nada é preto-e-branco – nem mesmo aquele cretino detestável da escola, que também está tentando entender como se virar na vida.
De uma forma ou de outra, os personagens estão no mesmo barco. Quando acontece uma festa na piscina, ninguém tem coragem de ser visto em traje de banho. Quando o seriado meloso Corações adolescentes dita a nova moda, todos resolvem seguir. Quando Patti convida Doug para ir ao cinema, nenhum dos meninos sabe direito se aquilo será um encontro.
Eventualmente, cada uma dessas generalizações se revolve, como se a série dissesse ao público: “está tudo bem; isso aí acontece e sempre podemos dar um jeito, sem deixar de ser quem somos”. Afinal, nem sempre os episódios terminam com Doug conseguindo o que queria; mas o garoto invariavelmente se descobre no processo e acaba sendo fiel consigo mesmo.
Ao longo de quatro temporadas e totalizando 52 episódios, Doug e os demais personagens viveram situações que, seguramente, Jinkins e sua equipe escolheram a dedo e desenvolveram com cuidado. Não há artigo que faça justiça a essa variedade. Só recomendo ao leitor que revisite alguns episódios com esse olhar e veja se não vão muito além do que percebíamos quando jovens.
Porém, a história de Douglas Yancey Funnie não termina aqui.
Doug e sua amarga sobrevida
As compras da Marvel e do universo Star Wars pela Disney não foram calamidades. Já a compra de Doug…
A casa do Mickey adquiriu o estúdio Jumbo Pictures, de Jim Jinkins, e começou a trabalhar na ressurreição do personagem. Em 1996, Disney’s Doug estreava nos EUA. Por aqui, a série foi exibida no programa Disney Club (aquele do CRUJ).
(A abertura de Disney’s Doug, que repagina a introdução original e apresenta o novo visual dos personagens.)
E foi assim que muitos de nós desenvolvemos azia, gastrite e queimação. Não por purismo barato, como se tivessem maculado um santo personagem com novo design e tema de abertura. O problema é que os 65 episódios produzidos pela Disney destroem alguns dos princípios básicos que faziam de Doug um desenho juvenil fora do convencional.
Novamente, é a situação de Roger que melhor exemplifica o desastre. Na Disney, desmontaram as razões para a agressividade do personagem. Sua família está desmembrada? Então vamos fazer com que seu pai volte. Eles são pobres? Vamos fazer com que ganhem na loteria (literalmente). E é assim que Roger se torna o vilão riquinho genérico, malvado porque sim.
Já Beebee Bluff, que sempre havia sido rica, acabou também mais arredia e mandona – enquanto nos tempos de Nickelodeon ela conflitaria com a mãe justamente por não querer holofotes. E Connie, antes um raro exemplo de personagem feminina acima do peso, foi simplesmente emagrecida pela Disney, na cara larga.
Mais? A família Funnie ganha um bebê que não serve a propósito algum senão o de ter um nome estranho: Cleópatra Motoneta Funnie. Sério? Os personagens de Bluffington tinham lá suas bizarrices, sim, mas parece outra tentativa desesperada de renovar as coisas. Chega a lembrar como os Simpsons pós-oitava temporada começaram a perder sua personalidade humorística, atirando para todos os lados.
(Causaram até a separação dos Beets! Mas admito, se deter nisso já é implicância de fã.)
O que é de se estranhar é que Jinkins tenha realmente se envolvido na produção da fase Disney. De repente, uma série que nunca tinha se importado em ser descolada (vide o figurino original do protagonista) começava a insistir nesse tipo de clima.
E o que deu em Jinkins, afinal? Uma hipótese é o fato de que o autor sempre lamentou que Doug não tenha tido tanto sucesso quando lançado, atribuindo isso à fama absoluta de Ren & Stimpy, animação surtada que dominava a atenção dos EUA na época. Talvez Jinkins tenha visto uma chance de renovação com a Disney, movimentando o clima relativamente tranquilo que a série adotava.
Verdade seja dita, não é que a nova fase tenha sido um fracasso de audiência. Mas as prequels de Star Wars também não foram, e qualquer fã da saga sabe dizer qual é a trilogia boa e qual só existiu porque a outra preparou terreno o bastante.
Assim, se na curiosidade por rever Doug você encontrar um episódio bem sem graça e pouco original, são grandes as chances de você ter esbarrado em um exemplar da fase Disney.
Em 1999, tentaram até emplacar um longa-metragem, Doug’s 1st Movie. E fica aí o equívoco de terem chamado de “o primeiro filme” uma coisa que nunca mereceu sequência. Nomeado por aqui como Doug, o filme, o longa se baseia na busca por um monstro que habitaria o lago do Pato Sortudo.
Spoiler: Doug e Skeeter realmente encontram um monstro aquático, incompreendido e camarada feito o alienígena de ET, o extraterrestre. Enquanto nas mãos da Nickelodeon isso só aconteceria em um devaneio com o Homem-codorna, o filme conclui o serviço de descaracterização do universo original. Quer dizer, sempre compramos a ideia de Costelinha como um cachorro humanizado cuja casinha era um iglu; mas nunca esperamos monstros aquáticos.
Após o filme, Doug foi cancelado de vez.
Doug entre espaços na memória
É comum que, internet afora, encontremos artigos e postagens com a ideia de que crianças dos anos 90 tiveram uma infância fenomenal. Assim como é comum que justifiquem essa teoria com listas de desenhos animados marcantes.
Em geral, Doug tem um lugar irregular nessas listas: pode estar perto do topo, sim, mas também pode estar para lá da octagésima posição ou mesmo fora.
Se comparada com outros Nicktoons daquela década, a série não foi tão além quanto Rugrats (também de 1991, mas produzido até 2004) nem tem sinais de retorno como Hey Arnold! (com um longa a ser lançado ainda em 2017). E se colocássemos desenhos de outras produtoras na jogada, teríamos exemplos ainda mais profundos de como Doug pode ficar para trás.
Em todo caso, como a própria TV Cultura percebeu, era uma série única, de personalidade forte e com muito a dizer. Consciente de sua proposta e de seu tempo. Afinal, Doug e seus amigos não eram legítimos jovens dos anos 90?