Este artigo foi escrito originalmente para a revista Scientific American por Thomas Vinciguerra. Confira aqui o texto original!
Nos dias primevos da televisão, seriados de ficção científica para a telinha geralmente ignoravam as leis da natureza, da tecnologia e do senso comum. Pegue, por exemplo, a série dos anos 60 Perdidos no Espaço. Em um determinado segmento, o “calor” de um cometa de alguma forma ameaça fritar um par de membros da família viajante espacial Robinson. Um pouco rebuscado, considerando que cometas são feitos de gelo, pedra e poeira estelar. Mesmo programas de qualidade como Além da Imaginação cometeram gafes nesse sentido, como no episódio de 1962 “The Little People”, que postulava humanoides com dezenas de metros de altura. Infelizmente, enquanto a altura de um corpo é multiplicada ao quadrado, o seu volume é multiplicado ao cubo. Portanto, essas formas de vida fictícias na realidade colapsariam sobre o seu próprio peso.
Foi então que, em 1966, veio Star Trek, estabelecendo um novo padrão de ouro para a plausibilidade científica na TV de entretenimento. O objetivo da precisão científica começou com o criador e produtor executivo, Gene Roddenberry. “Roddenberry me disse, ‘Eu quero que cientistas consigam assistir o nosso programa, acreditar nele, gostar dele – e não rir dele, ’” disse Marc Cushman, co-autor de These Are The Voyages, uma coleção de três volumes sobre o making of da série. “Ele disse, ‘Eu queria saber que se isso não for provável, ao menos é possível.’”
Muitos dos detalhes que deram a Star Trek o seu aspecto futurista – monitores médicos, dispositivos de comunicação portáteis, portas automáticas – se tornaram realidade. O que, afinal de contas, era o “computador-biblioteca” do Sr. Spock senão uma visão primordial da internet? E que tal aquelas fitas de gravação quadradas, carregando informações digitalizadas, as quais a tripulação colocava em convenientes dispositivos para obter de tudo, de simples leituras a até mesmo refeições? Elas eram nada menos do que disquetes do século XXIII.
Claro que muitas vezes Star Trek ia um pouco longe demais. Nós provavelmente não veremos viagens mais rápidas que a luz, os chamados “warp drives”, durante muito tempo ainda. Isso sem falar no teletransporte – o equipamento que “partia” corpos e objetos em energia, “energizando” as partículas para um certo ponto e então as rearranjando em seus componentes originais. “De tudo que existia em Star Trek,” disse em 1978 Jerry Pournelle, o antigo presidente da Science Fiction and Fantasy Writers of America para a revista Science Fantasy Film Classics, “o teletransporte é o mais difícil de todos. Vai ser o que mais vai demorar para existir.”
Mesmo assim, os produtores de Star Trek tentaram fazer as coisas da maneira mais verossímil e razoável possível, começando com o episódio piloto, “The Cage”. Roddenberry contratou Harvey P. Lynn Jr., um físico da Corporação RAND, para fornecer supervisão técnica por uma taxa nominal. Como posteriormente relatado em um livro sobre a produção da série, os comentários de Lynn eram variados e astutos. Por exemplo, ele pegou uma linha de diálogo em particular do episódio piloto: “Algum planeta com oxigênio?” pergunta o comandante. Nos seus comentários para o episódio, Lynn escreveu “Tecnicamente, um planeta pode ter oxigênio e ainda não conseguir sustentar vida por uma série de outros motivos”. Assim, na versão final um membro da tripulação reporta “Nossas leituras mostram uma atmosfera de oxigênio-nitrogênio, senhor. Pesada com elementos inertes, mas bastante dentro dos limites de segurança”.
Em outro lugar, Roddenberry escreveu que o planeta natal da raça alienígena presente, os telepatas Talosianos, tem uma gravidade de “1.3 em relação a Terra”. Mas ele também descreve seus habitantes como pequenos e magros, com cabeças alongadas. “Isso não é consistente com uma gravidade de 1.3”, Lynn apontou no período, “mas é consistente com uma gravidade menor que a da Terra. Porque não substituir por ‘0.85’, ‘ponto 85’ ou ‘85%’?” Então a linha mudou para zero ponto nove da Terra.”
Quando Star Trek se tornou uma série regular, os produtores do show se voltaram para a De Forest Research, Inc., para oferecer suporte científico e legal. “O que (Roddenberry) tentava fazer era evitar eram os clichês-padrão de ‘monstros de olhos esbugalhados’,” de acordo com o fundador da companhia, Kellam de Forest, 89. A maior parte do review do roteiro ficou nas mãos dos então associados de de Forest, Joan Pearce e Peter Sloman. “Na maior parte do tempo, a ciência não estava em um nível em que eu pudesse oferecer qualquer tipo de consultoria”, lembra Sloman, 66. “De vez em quando, eu ligava para alguém do departamento de física da UCLA, mas na maior parte dos casos eu sabia o bastante. A não ser que fosse uma violação explícita das leis da física, eu estava inclinado a deixar passar, porque muito já havia sido estabelecido na ficção científica. Como viagens no tempo. Wells fez isso, Heinlein fez isso, então nós também fizemos.”
Algumas questões problemáticas foram resolvidas na base da canetada. No popular episódio cômico “The Trouble with Tribbles”, o escritor David Gerrold concebeu uma espécie de bolas de pelo fofas, ronronantes e que se reproduziam em uma velocidade e quantidade alarmantes. Mas o time de De Forest decalcou a natureza “assexuada” das criaturas. “Assexuado significa reprodução por fissão”, eles escreveram. “Seria melhor torna-los bissexuais, significando que as criaturas podem ser machos e fêmeas ao mesmo tempo”. Então Gerrold reescreveu de acordo.
De maneira similar, o episódio “By Any Other Name” mostrou a captura da tripulação da Enterprise pelos Kelvanos, uma raça que podia congelar os impulsos nervosos de seus inimigos. Pearce se opôs. “Se todos os impulsos nervosos são paralisados,” ela escreveu em um memorando, “o organismo vai morrer, porque os impulsos automáticos são paralisados juntos com os impulsos voluntários.” A solução: O líder kelvano entoa “Vocês estão paralisados por um seletivo campo que neutraliza impulsos nervosos para os músculos voluntários”. “Joan não se importava com as pessoas não entenderem”, afirma Sloman com uma risada, “ela não se importava mesmo. Ela amava palavras e gostava de usa-las apropriadamente e se irritava quando não era assim.”
Assim, Pearce apropriou uma elocução ao navegador, o alferes Pavel Chekov (Walter Koenig), em “Bread and Circuses”, quando eles se aproximam do planeta 892-IV: “Apenas 1.16 parsec de distância, Capitão. Nós estaremos lá em segundos”. “Isto seria o equivalente a um motorista de um carro dirigindo a 80 km/h dizendo ‘Estamos a apenas alguns metros de distância. Nós estaremos lá em segundos,’” Pearce protestou. “Sugiro que a Enterprise esteja viajando em velocidade abaixo da luz (por exemplo, 5000 km/s) e o sistema esteja a 100.000 km de distância.
Talvez o enigma mais aborrecedor que Star Trek encontrou ocorreu em “The Devil in the Dark”, escrito pelo produtor Gene L. Coon. O roteiro pediu uma bolha horrenda e cuspidora de ácido que seria uma criatura que come rocha sólida, se movendo tão rapidamente nesse meio como humanos se movem através do ar. Este “horta”, como eles são chamados, seriam compostos de um elemento que não o carbono, mas sim o seu elemento relativo mais próximo, o silício. Palavras objetivas vieram de De Forest e companhia: “Vida baseada em silício só poderia se desenvolver e se sustentar em condições de extremo calor – talvez um ambiente comparável ao que se encontra em Mercúrio. Não seria possível ela existir em uma atmosfera de oxigênio. Na presença de oxigênio, o silício entraria em uma reação química espontânea – ou seja, eles queimariam”. Dessa forma, a equipe de Star Trek contornou a situação com um ambiente subterrâneo sintético, artificialmente criado, não-hostil aos humanos. Este cenário ainda permitiu ao cético Dr. McCoy (DeForest Kelley) argumentar “Vida baseada em silício é fisiologicamente impossível – especialmente em uma atmosfera de oxigênio”. Ao que o sempre lógico Sr. Spock (Leonard Nimoy) responde “Pode ser, doutor, que a criatura possa existir por breves períodos em uma atmosfera assim antes de retornar ao seu próprio meio-ambiente”. Pode ser um pouco contestável, mas é também uma tentativa honesta de reconciliar lei científica e liberdade artística.
Conforme Star Trek decolava, sua inclinação para a plausibilidade se tornou uma faca de dois gumes. Fãs assimilaram isso, e começaram a dissecar os jargões técnicos e auto assumidos da série. “Uma carta estereotipada,” lembra o co-produtor Robert H. Justman, “poderia dizer: ‘no terceiro ato do episódio da última semana a narração do Capitão Kirk indica a data estelar de 4891.4, mas ele já havia mencionado a data estelar 4323.7 no primeiro ato. Isso significa que ele fez amor com a donzela-princesa de quatro seios de Phobos 7 antes que ele chegasse e se transportasse para a terra. Como isso pode acontecer?” Peter Sloman certa vez recebeu uma carta de um colega de colégio que cutucava por permitir que a temperatura do casco do módulo auxiliar do show, a Galileo, atingisse um limite impossivelmente alto quando reentrando na atmosfera planetária. “Você sabe,” escreveu o amigo de Sloman, “que essa temperatura é 500 graus (fahrenheit) acima do ponto de recristalização do ferro?”
Outros erros aconteceram: em “The Omega Glory”, McCoy pontua que o corpo humano é composto por 96% de água. O número correto mais próximo seria 60%. Em “Court Martial”, Cap. Kirk explica que como aumentar a força do computador de sensor auditivo da Enterprise. “Instalando um propulsor, nós conseguimos aumentar a capacidade de força na ordem de um para quatro.” O que o bom capitão não percebeu é que um aumentado para a ordem de quatro ainda é um. Sloman, que é especialista em linguística pela Georgetown University, tinha um preconceito particular contra o tradutor universal, um dispositivo portátil que, no episódio “Metamorphosis”, transformava pensamentos alienígenas (sequer linguagem) em inglês. A não ser que a bugiganga tenha poderes telepáticos de boa vontade, ele argumenta, é absolutamente não-funcional. “Seria algo saído de Captain Video, uma série que precedeu Star Trek em quase 15 anos.”
No final das contas, quando se tratou de servir ao deus do drama e ao césar da ciência, Star Trek mais do que segurou sozinho. Ninguém menos do que o colosso da ficção científica Isaac Asimov disse certa vez: “É isso que faz a diferença entre Star Trek e todas as outras séries de ficção científica que eu já vi – ela é a única série em que, não importasse quem estivesse envolvido, Gene – e eu não citarei nomes – insistia que todos tivessem ao menos algum conhecimento e preparo científico. E ele estava certo! Você podia ver que mesmo quando estavam quebrando as leis da ciência, estavam fazendo-o de maneira inteligente e plausível.”