Fala sério! Já repararam em quantas coisas temos que aguentar no dia-a-dia? Trânsito, fumaça, transporte público lotado, pessoas falando asneiras, você falando asneiras, ir para onde não quer, dizer sim quando quer dizer não, dizer não quando quer dizer sim, negar os impulsos, sorrir para babacas, babacas sorrindo pra você, você ser um dos babacas, etc. A lista corre ininterruptamente. Droga, só de pensar nisso já fiquei de mau humor. E o pior, ainda terei que encarar essas coisas novamente assim que terminar esse texto. E se acham que este momento de escrita é um escape, estão muito enganados. Pois, o assunto é justamente sobre Vida no Inferno!
Iniciado no final da década de 70 e produzido por mais de 25 anos, Vida no Inferno (Life In Hell) é uma série de cartuns humorísticos criados por Matt Groening. O autor é muito mais conhecido por seus trabalhos na televisão como Os Simpsons e Futurama, mas foram as tiras desta série que deram a base e o estilo desse tipo de humor tão característico de Groening.
Esse ano, a Veneta publica uma coletânea, organizada pelo próprio Groening, com tiras selecionadas dos dez primeiros anos de história de Vida no Inferno, incluindo algumas que nunca foram publicadas em formato de livro.
Basicamente, esta obra é um cartoon humorístico cujo personagem principal é o coelho Binky. De maneira antropomórfica, esse protagonista interage com outros personagens e se encontra em situações que se assemelham, e muito, com aquelas pelas quais nós mesmos passamos em nossas vidas. E, claro, há um aumento de proporção para os absurdos dos quais compactuamos como forma de crítica e até auto-crítica.
A vida em sociedade têm suas vantagens evolucionistas. É preciso conviver para sobreviver, mas tudo tem um preço e nem sempre é em dinheiro. Binky e suas histórias possuem um humor ácido que corrói o tabu que é a crítica a alguns costumes. Não é porque estamos acostumados a certas coisas que devemos permanecer calados, só que o problema é que ao abrir a boca estaremos fazendo uma sangria. Por mais que possa se mostrar benéfica a longo prazo, a mudança em si é uma dor que muitos não querem sentir. Ou às vezes nem haverá dor, mas há o medo dessa possibilidade.
Vida no Inferno é um cartoon muito curioso. O traço infantil (bem na linha de Os Simpsons) ajuda o leitor a fazer uma analogia muito mais completa para sua situação. Se a tira fosse mais detalhada, essa identificação imediata perderia a eficácia. Talvez o ponto mais alto do humor de Groening é que ao mesmo tempo que diverte, ele incomoda. É a famosa tragicomédia de nossas vidas. São tantos absurdos que acontecem com esses personagens de olhos esbugalhados que nos fazem rir durante alguns segundos, para depois nos tocamos que estamos rindo de nós mesmos.
Ora essa, todo mundo passa por tais situações. Todo mundo já pensou coisas parecidas. E se não, conhece quem já passou. É claro que tudo é extrapolado, porém a simplicidade da narrativa deixa lacunas que são preenchidas pela vivência de cada um que a lê, tornando o leitor um co-autor da obra. E claro, junto com a risada, vai vir o mal-estar da auto-consciência.
Infelizmente, não são todas as tiras que possuem essa força tragicômica descrita acima, já que muitas delas são mais “genéricas” pelo formato em que se apresentam. De forma isolada, como eram publicadas originalmente, elas funcionam bem. Entretanto, em uma compilação, onde lemos várias seguidas uma da outra, muitas perdem sua força.
Outra infelicidade da obra – ou melhor, de nós leitores – é justamente sua época. A realidade de hoje é muito diferente daquela em que Groening publicava essas tiras. Dessa forma, muitas histórias ali contadas ficam um pouco distantes de nós e junto há uma frustração por não termos algo parecido na atualidade, onde o número de absurdos sociais e pseudo-sociais poderiam render tiras incrivelmente hilárias (imaginem tiras zoando a terapia facebookiana). Isso é uma pena, pois hoje em dia, o “Inferno“ está um pouco mais quente.
Vida no Inferno é aquela coletânea de tiras tragicômicas que você ri e se dói ao mesmo tempo. A crítica pode passar despercebida para o leitor mais desatento, mas aquele mais calejado consegue compreender as sutilezas do subtexto da obra e aproveitá-la ao máximo na diversão. E até no masoquismo, pois além de crítico, quadrinho é muito auto-crítico. Ninguém escapa dos absurdos. Quando andamos na rua, enxergamos um número incontável de malucos. Para somar mais um à essa quantia, basta olharmos num espelho.
P.S.: O mais louco disso tudo é um cara escrever essas tiras como forma de terapia e ter outro cara, vulgo eu, escrevendo sobre a terapia desse primeiro cara em seu site, que também é uma forma de terapia. Sabe o pior? Esse texto levou tempo, poucas pessoas vão lê-lo, não vou ganhar dinheiro com isso e daqui a pouco tenho que pegar o metrô. Lotado, é claro.