De cara, alguns leitores de quadrinhos podem associar o nome Roger Cruz a um tipo de trabalho que nada tem a ver com Xampu, lembrando a época em que o brasileiro fazia sucesso desenhando títulos como X-Men. Isso é até irônico, pois aquele momento específico da grande indústria ficou marcado negativamente em termos gerais, contrastando ainda mais com o tipo de história que interessa ao artista hoje. Não apenas falando sobre qualidade, mas também observando a distância conceitual enorme que existe entre um mundo povoado por super-seres e um grupo de jovens em São Paulo, atrás de coisas que qualquer um de nós pode entender e identificar-se.
Escrito e ilustrado por Roger, Xampu já havia sido publicado pela Devir em 2010, ganhando agora nova edição pela Panini, em parceria com a Stout Club. Com suas 80 páginas e custando R$ 29,90, é uma coleção de pequenas histórias ambientadas entre o fim da década de 1980 e o começo da seguinte, com personagens mais ou menos ligados entre si e orbitando o microcosmo de um apartamento na zona norte da capital paulista. Esse ponto de encontro dos amigos – e amigos dos amigos – é um cenário de bebedeira, curtição e rock’n’roll rolando em um aparelho 3 em 1. Não existe um protagonista, mas, a partir da apresentação deste local, conhecemos os personagens que serão melhor desenvolvidos nas páginas seguintes.
Um prefácio informa o leitor dos tons autobiográficos da HQ. Nem precisava, pois chama atenção a profundidade e a sensibilidade com que os temas são tratados, mostrando a intimidade do autor com aquele universo. O próprio apartamento, tratado como se fosse um personagem vivo, e assim o consideramos, não apenas pelo primeiro segmento ser nomeado como O apê, mas a relação entre o imóvel e seus frequentadores e moradores é especial. Faz qualquer um lembrar-se de algum lugar onde costumava se reunir com amigos. A sinceridade de detalhes como esse é o diferencial, não importando a condição do leitor.
Os próprios clichês, se é que podemos chama-los assim, são aqueles da vida real e tratados de acordo. O sonhador aspirante a estrela do rock se dando bem com as garotas pelo status de cantar em uma banda, a menina frustrada com esse tipo de infidelidade, o introvertido que tem poucas chances de ficar com quem realmente gosta, além de outros tipos que circulam por ali, tem suas vidas cruzadas pelos seus interesses em comum. O carinho de Roger Cruz por essas pessoas é o que os deixa atraentes para o leitor, tornando interessantes situações mais do que corriqueiras – como a de Raquel, que precisa entregar um vestido para a tia a pedido de sua mãe.
Entre os contornos mais dramáticos, Xampu também não deixa a desejar, porém, mantendo a narrativa segura e sem apelações. Seja no amor não correspondido de Max, ou no trágico – um julgamento particular – destino do Sombra, cada segmento é uma grande história dentro de seu minúsculo espaço. Muito disso porque esses pequenos contos nos lembram de pessoas reais, conferindo a dimensão de verossimilhança que muitos autores sequer arranham. Os diálogos são parte fundamental deste processo e não decepcionam.
Após tantas considerações elogiosas nem seria necessário, mas não haveria como resenhar um trabalho de Roger Cruz neste momento da carreira sem comentar a arte. Absolutamente distante dos quadrinhos de super-heróis, a liberdade (tudo a ver com esses personagens, não?) na estilização do traço solto confere uma expressividade muito marcante. O visual dessas figuras é algo difícil de esquecer, trabalhando em sinergia com o texto, funcionando perfeitamente em uma narrativa clara e limpa, apesar da quantidade considerável de detalhes das cenas. Simplesmente, perfeito.
Xampu Vol. 1 é imperdível. Ainda que não seja inédito, é um dos melhores lançamentos do ano e um motivo de orgulho para o público brasileiro de HQ’s, além de deixar claro, para quem ainda tinha dúvidas, que grandiloquência nunca foi requisito fundamental para um grande trabalho.