Criado por Roy Thomas e John Buscema em 1968, o androide Ultron tem particularidades que o distinguem da galeria dos vilões dos Vingadores. Longe de ser apenas mais um a fim de destruir ou dominar a humanidade, o personagem tem muito mais bagagem do que sua versão cinematográfica no segundo filme do super grupo (leia a crítica publicada na época e ouça o podcast).
Nas HQ’s, Ultron foi construído por Hank Pym, que teve mais de uma identidade heroica ao longo de carreira – como Homem-Formiga, Gigante e Jaqueta Amarela – e a Marvel, durante a década de 1970, tratava essa relação de amor e ódio entre criador/criatura não apenas como uma releitura de Frankenstein, mas também como uma complicada variação de tragédia grega. O vilão até construiu para si uma companheira robótica, para onde transferiu a mente da Vespa, então esposa de seu “pai”. Com muito pouca sutileza, a personagem foi batizada como Jocasta.
Como bem observa Kurt Busiek em seu prefácio para Vingadores: A Ira de Ultron (Avengers: Rage of Ultron), volume da série Marvel OGN (Original Graphic Novel) publicado originalmente em 2015, a trajetória do vilanesco androide, ao longo dos anos, teve ramificações que aproximaram suas batalhas contra os Vingadores de um psicodrama familiar. Sua relação como também criador de um integrante clássico da equipe, o Visão, é um desses elementos. É exatamente esse o caminho que Rick Remender escolheu para contar mais essa história.
Investindo pesado na dinâmica pai X filho, o roteirista abre mostrando uma aventura do passado dos Vingadores, onde Pym, como Jaqueta Amarela, elabora a estratégia que permite livrar a Terra de Ultron, enviando-o ao espaço. O fator dramático é que o desfecho desta luta só foi possível graças a uma manipulação da fraqueza emocional do androide, que de distrai em um momento crucial. Vitória, mas Pym não carrega apenas a culpa de ser o criador de uma inteligência artificial assassina, mas também o peso por haver traído o “filho”.
Anos depois, encontramos a equipe em sua fase Nova Marvel, com Sam Wilson como Capitão América e a versão feminina de Thor, entre outras caras mais ou menos conhecidas. Vespa e Hank Pym, agora como Gigante, também estão nesta formação. Ao deter o grupo dos Descendentes, também seres artificiais, Pym revela que agora tem soluções mais pragmáticas, cínicas e definitivas para lidar com esse tipo de forma de vida, algo que traz um dilema ético ao grupo e faz o próprio Visão questionar a forma como é visto pelos colegas. Enquanto isso, Ultron se apossa de Titã, lua de Saturno, o que faz com que o ex-vingador Starfox peça ajuda à sua antiga equipe.
Justamente por esses conflitos internos, o roteiro de Remender tem um pouco mais de substância do que apenas quebra-quebra, algo muito bem vindo. Isso não significa que fique devendo na ação. Não fica mesmo e as sequências cinematográficas, com uma narrativa visual muito afiada, rendem uma aventura muito divertida que vai agradar até algum leitor que andava afastado e escolheu a edição ao acaso. Aliás, se você é um dos que não lê gibis da Marvel há tempos, não precisa preocupar-se em se enrolar com a continuidade. O máximo que vai acontecer é estranhar a nova equipe e o grupo dos Descendentes, mas isso de forma alguma atrapalha a compreensão da história.
Citei a ótima narrativa visual, mas não é apenas esse o mérito da arte de Jerome Opeña e Pepe Larraz, com arte-final de Mark Morales. É preciso ressaltar a qualidade realística deste trabalho, contribuindo com o clima geral de seriedade que o texto de Remender procura passar. Além disso, os quadros tem uma beleza individual indiscutível, com as cores de Dean White, Rachelle Rosemberg e Dono Sanchez Almara conferindo mais textura e contribuindo para a imersão do leitor.
Com capa dura e papel de ótima qualidade no miolo (a um preço não abusivo de R$ 28,90),Vingadores: A Ira de Ultron é muito bom, mas dentro de sua proposta. O único ponto negativo é justamente essa proposta geral da Marvel (ou da grande indústria em geral), só regurgitando os mesmos conceitos há décadas e mudando muito pouco a embalagem. Não é culpa do roteirista, claro, mas é óbvio que são amarras que o forçam a sacrificar muito do seu potencial. Mesmo assim, parabéns a Rick Remender e aos artistas por uma história que entretém e diverte neste nível. Já que são obrigados a reciclar, fizeram muito.