Todos, ao mesmo tempo em que são iguais, são diferentes. Cada família tem suas particularidades, suas virtudes e seus remorsos. E como bem colocado na própria orelha do quadrinho, Tolstói disse que “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Dessa forma, Umbigo Sem Fundo (Bottomless Belly Button) nos apresenta o lado mais íntimo e sensível de todos os membros da família Loony, em uma história peculiar sobre os frágeis alicerces que sustentam a relação entre pais e filhos e do indivíduo consigo mesmo.
Escrito e ilustrado por Dash Shaw e publicado originalmente em 2008, a HQ Umbigo Sem Fundo conta um episódio desta família, em que todos se reúnem depois da notícia que Maggie e David Loony vão separar-se após quarenta anos de casados, afirmando que não se amam mais. Esse reencontro é para que os filhos e netos possam entender os motivos do divórcio.
A partir do pano de fundo estabelecido, seguimos cada um dos personagens em suas buscas pessoais por respostas para questões que nem sabiam ter. Enquanto cada um recebe a notícia do divórcio e a sente à sua própria maneira, ainda assim percebemos que a separação deles – que formam o tronco da árvore genealógica dos Loony – é como o corte do cordão umbilical, iniciando uma nova vida para cada um.
Cada personagem em Umbigo Sem Fundo tem momentos e jornadas particulares. Desde os filhos até netos, todos são escritos e retratados de maneira muito sincera e sem pudores. Todavia, os mais interessantes são os personagens Dennis e Peter.
Dennis, o filho mais velho de Maggie e David, que não aceita a separação e começa a revirar antigos baús cheios de poeira, vasculha cômodos e adentra túneis escondidos pela casa, tentando encontrar algum conforto nas coisas que marcaram o relacionamento de seus pais. É na jornada dele que percebemos os mais poderosos simbolismos da obra. No caso de toda poeira que se encontra no trajeto de Dennis, podemos interpretar da seguinte forma: como a poeira é formada, em grande parte, por pele humana, o personagem precisa sempre atravessar mais e mais camadas conforme vai de encontro a um passado mais longínquo. Retirando a pele de seus pais, que viveram naquela casa durante muito tempo, ele procura chegar ao âmago de seus sentimentos. E quando Dennis passa pelos túneis escondidos na casa, ele não está querendo voltar ao útero materno, fugindo da luz e fazendo o caminho inverso? Enfim, tudo isso são apenas interpretações pessoais. Cada leitor pode ter a sua e a obra dá ferramentas para diversas possibilidades.
Peter é o caçula de Maggie e David. Ele se considera o pária da família e por isso enxerga a si mesmo como um sapo. Sente-se inseguro e, assim como um anfíbio, vive em um ambiente que é uma mistura entre a terra e a água. Ele não sabe o que sentir, não sabe como agir e seus impulsos acabam ditando suas ações. O gosto particular por cinema, mostra que ele tem empatia e compreende muito mais a psique de personagens fictícios do que de sua família – ou de si mesmo. Junto com os outros personagens, se mostra alguém com grande potencial que apenas precisa ser auto-descoberto.
Recheada de momentos extremamente belos e outros extremamente íntimos, a narrativa faz com que a empatia com os personagens seja rápida e natural. Dificilmente o leitor vai se identificar com um único Loony. É muito mais provável que se identifique com fragmentos de cada um dos membros da família, de modo que o envolvimento maior venha pelo todo da obra, embora algumas situações e sentimentos retratados possam ser mais assertivos de forma individual. Mas, além de testemunharmos os momentos mais pessoais dos protagonistas, o roteiro também possui alguns elementos que são um tanto surreais, que acrescentam um tempero a mais de imprevisibilidade aliada aos acasos da própria vida real.
Os traços de Umbigo Sem Fundo são simples, mas sofisticados. Aliados a uma diagramação que ajuda, e muito, o ritmo da história, percebemos que a arte aqui funciona de uma maneira singular. As elipses de tempo são, em várias partes, muito longas. Seja mostrando o vai e volta das ondas repetidas vezes, ou a asa de um avião entrando e saindo das nuvens. Porém, esse espaçamento é muito bem vindo por vários motivos, sendo que um deles é dar uma pausa para o leitor – e até para qualquer personagem – digerir acontecimentos recentes. Além disso, muitas elipses estão ali para mostrar que, mesmo com o passar do tempo, o personagem não conseguiu se decidir sobre determinada questão, ou o passar do tempo se torna até um tipo de tortura para ele, já que o alívio da dor parece nunca chegar.
Umbigo Sem Fundo é um quadrinho que deve ser lido com calma e com carinho. Cheio de personalidade e carisma, este trabalho nos brinda com personagens cativantes e uma linguagem narrativa que merece um olhar mais aprofundado pelas suas belas sutilezas. Todos temos um pouco dos Loony e eles têm um pouco de nós. A maior questão aqui é que a história não é sobre a família, mas sobre cada indivíduo e sua própria jornada.