Tungstênio retrata a realidade conturbada de um microcosmo
Todo ser humano que vive em sociedade possui um padrão de fábrica em relação à ética e às boas práticas. É claro que determinadas circunstâncias e cenários acabam deslocando essa barra para um lado ou para o outro, mas é inegável que existe um meio de campo comum a todos. Mesmo assim, todos nós – repito, todos nós – nos damos o direito de, vez ou outra, agir fora desse espectro. Óbvio que nossa consciência sempre busca alguma justificativa, de modo a tornar essa fuga aceitável, mantendo nosso ego ileso e pueril. Mesmo sabendo, lá no fundo de seu caráter anestésico e temporário. Tungstênio retrata a realidade conturbada de um microcosmo que é regido não por esse modelo padrão, mas sim pelos pequenos detalhes originados dessa rebeldia, que fogem um pouco desse status quo considerado aceitável. Mesmo que tenham suas desculpas.
Escrito e ilustrado por Marcello Quintanilha, publicado em 2014 pela Editora Veneta, Tungstênio se passa ao longo de um dia no litoral baiano e acompanha, basicamente, quatro personagens que têm seus conflitos iniciados a partir de um evento criminoso na enseada, envolvendo um método de pesca ilegal. Mesmo que a tensão gerada a partir da circunstância criminal inicie e pontue a narrativa em vários momentos, a história nos serve muito mais como um estudo de personagens do que a resolução de um problema. Por isso, falar mais da sinopse pode atrapalhar um pouco sua experiência, caso ainda não tenha lido o quadrinho.
O ser humano como ele é
Assim como os excelentes trabalhos posteriores, o perturbador Talco de Vidro e o incisivo Hinário Nacional (que também ganhou um Formiga na Tela), Quintanilha despe o ser humano sem nos poupar de eventuais constrangimentos para com nossa espécie. Não existe herói ou vilão, santo ou pecador. Todos possuem capacidade para o bem e para o mal, e normalmente as ações ficam transitando entre esses dois mundos sem nenhuma fronteira muito clara.
A verdade é que o autor tira o véu, já tênue, que cobria seus personagens e joga suas características mais ególatras ao longo das páginas. Mas, veja bem, isso não quer dizer que o mundo é um lugar sujo e seus habitantes tão imundos quanto seu habitat. Significa apenas que somos falhos e tais falhas podem gerar consequências drásticas. E ninguém escapa. A sutileza da obra mostra claramente que qualquer um pode ser o estopim para uma tragédia ou para um evento edificante e benéfico. É a Teoria do Caos em sua mais pura essência.
Um dos pontos mais fortes da HQ é o caráter regional da obra. Por meio dos cenários, dos costumes, do linguajar e até do biotipo dos personagens, nos sentimos no litoral baiano sem grandes esforços. Quintanilha consegue empregar características tão ricas na história que nenhum estereótipo é necessário – mesmo para aqueles que nunca visitaram essa região. Mas, de nenhuma forma esse caráter regionalista exclui o poder da narrativa para quem não faz parte do contexto retratado pois, novamente, o autor fala sobre o ser humano, criando um fator de identificação que abrange todos, pelos menos a maioria, ao redor do globo terrestre. Tudo isso torna Tungstênio uma verdadeira aula para artistas que empregam esse caráter em suas obras, independentemente da mídia. Quem dera se alguns cineastas, brasileiros e estrangeiros, conseguissem retratar com tamanha fidelidade um local e seus moradores, fugindo dos empobrecedores clichês.
Outro elemento muito bem usado no quadrinho é a montagem paralela. Mesmo tendo diversas linhas narrativas intercaladas, em nenhum momento o leitor se perde com relação à noção de tempo e o ritmo, imposto de forma natural, ajuda a dar peso ao drama dos personagens. Mesmo que a trama se passe em apenas um dia, conseguimos saber do passado de seus personagens e imaginar seu futuro. É claro que alguns flashbacks ajudam a situar o leitor, mas a sapiência dos diálogos e a própria concepção visual dos protagonistas já dão conta de enriquecer o desenvolvimento.
A narrativa de Marcello Quintanilha
Sobre a arte, Quintanilha mostra total domínio da linguagem. A fisionomia dos personagens e os enquadramentos são extremamente competentes e objetivos. Em nenhum momento vemos alguma prepotência na diagramação ou nos desenhos, o que que ajuda o leitor a se manter imerso na história que, mesmo sendo mais sobre personagens do que sobre a falha trágica, ainda assim instiga para a resolução da trama. Muito bem vindo para qualquer arte sequencial, independente da natureza do gênero.
Entretanto, Tungstênio apresenta alguns problemas de ritmo lá pelo segundo terço da história. A trama se arrasta um pouco e alguns acontecimentos não causam grandes modificações na linha já estabelecida. Nada que estrague a experiência da leitura, mas não deixa de ser uma pequena pedra ocasional em um calçado confortável.
Este é outro ótimo trabalho de Marcello Quintanilha, autor que prova novamente que o cenário brasileiro possui artistas de qualidade na nona arte. Colocando o leitor dentro de um microcosmo que têm seus reflexos no macrocosmo tipicamente humano, o quadrinho carateriza seus personagens de maneira exemplar, sem a necessidade de estereótipos ou didatismo infantil. Todo bairro e toda rua já tiveram sua história à la Tungstênio. E você, caro leitor, já foi protagonista em alguma delas. Mas não pense que estou criticando-o. Não me odeie. Eu mesmo já fui protagonista de algumas também.