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Sopa de Lágrimas – Realismo em quadrinhos!

Pegue um caldeirão metafórico e coloque a literatura de Gabriel García Márquez e Isabel Allende, o cinema de Lucchino Visconti, Roberto Rossellini e Federico Fellini, a peça Orfeu Negro de Vinícius de Moraes e mais umas pitadas de clássicos quadrinhos juvenis. Misture tudo e depois gratine com originalidade. O resultado disso são as histórias cativantes em Sopa de Lágrimas.

sopa-lagrimas-resenha

Antes de falar especificamente sobre Sopa de Lágrimas (Heartbrek Soup), é preciso falar sobre outra publicação. Em 1980, inspirados no contexto punk de Los Angeles, do qual faziam parte, os irmãos Hernandez resolveram criar um fanzine com suas histórias em quadrinhos, intitulado Love and Rockets (Amor e Foguetes). Era uma publicação barata em preto e branco, com histórias de ficção-científica misturadas a cenas do cotidiano dos jovens punks. Mais para provocar do que esperar realmente algum tipo de elogio, os irmãos Hernandez mandaram uma cópia do zine para a mais rigorosa revista americana de crítica de quadrinhos, a Comics Journal. No lugar de resenhas negativas e destruidoras, como era de costume, veio um convite para que Love and Rockets fosse publicado na própria editora da revista, a Fantagraphics.

Love and Rockets (Neil Gaiman e Alan Moore são fãs declarados)

Love and Rockets (Neil Gaiman e Alan Moore são fãs declarados)

Após sua publicação, a Fantagraphics se tornou a principal referência do novo quadrinho norte-americano impactando toda a indústria do gênero. Em um artigo de maio desse ano, o jornal inglês The Guardian afirma que Love and Rockets abalou o mundo dos quadrinhos e que não seria exagero dizer que sem ela a DC Comics, por exemplo, não teria se aventurado em publicar coisas como Watchmen e a linha Vertigo, ou mesmo o Sandman de Neil Gaiman.

Em 1983, um dos irmãos, Gilbert Hernandez, começou a contar em suas páginas as histórias de Palomar, um pequeno vilarejo em algum lugar da América Latina. É aqui que começa Sopa de Lágrimas.

Sopa de Lágrimas

Publicado pela primeira vez no Brasil pela Editora Veneta, Sopa de Lágrimas conta a história de vários personagens que vivem em Palomar, um pequeno vilarejo localizado em algum ponto esquecido da América do Sul.

É complicado fazer uma sinopse dessa compilação, pois cada história vai focar em um personagem, ou grupo, nas situações mais adversas. Além disso, o tempo realmente passa conforme o quadrinho avança. Aqueles que eram crianças no início, passam pela adolescência e chegam à fase adulta no final da HQ. Aquelas belas e sedutoras mulheres no início, começam a sentir o declínio do corpo conforme a idade avança. Portanto, me darei o direito de falar que a sinopse pode ser resumida em uma frase: a vida conturbada de personagens cativantes em um pequeno vilarejo.

Sopa de Lágrimas

As histórias em Sopa de Lágrimas são muito diferentes daquelas normalmente publicadas em Love and Rockets, porque estão totalmente fora do cenário punk. Gilbert Hernandez consegue criar personagens muito distintos e fora do padrão, ainda assim mantendo o realismo dentro da narrativa. Isso se dá, justamente, pelo fato de que as histórias são sobre as emoções mais básicas do ser humano e seu amadurecimento.

Temos pequenos contos sobre amor, traição, soberba, brincadeiras infantis, preconceitos, fobias e superação. Com triângulos amorosos, insinuações de pedofilia, inimigos que se tornam amigos, entre outras peripécias, percebemos Palomar como um verdadeiro organismo que fica mais saudável ou mais enfermo de acordo com o comportamento de seus órgãos, que seriam os personagens.

O autor demonstra grande conhecimento social e filosófico em suas histórias. Além do grande potencial para associações diversas com elementos de fora da obra, o leitor mais voraz perceberá várias referências, tanto visuais quanto conceituais, e releituras. Há até mesmo um segmento de nome Ecce Homo, nome de um livro do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.

Sopa de Lágrimas

O autor Gilbert Hernandez

Dentre os principais moradores de Palomar, podemos destacar Luba, uma exuberante forasteira que se instala no vilarejo em busca de uma nova vida. Chamando a atenção dos homens por sua beleza e voluptuosidade, Luba ama e odeia esse fetiche que consegue causar. Em determinados instantes, ela usa tais atributos – mesmo que inconscientemente – para proveito próprio, mas em outros, essa sensualidade atrapalha quando ela quer apenas se divertir de maneira pura, por exemplo, quando está em uma pista de dança querendo simplesmente dançar e acaba assediada.

Outra personagem que ganha destaque é Chelo, a banhadora oficial da cidade. É uma mulher forte, decidida e independente. Seu carisma e pulso firme faz dela uma espécie de xerife informal da cidade (sendo que, no futuro, ela se torna oficial – relaxem, pois não é um spoiler) e confidente. Homens, mulheres e crianças se despem perante Chelo, tanto fisicamente quanto em sentido figurado.

Sopa de Lágrimas

Os acontecimentos e os personagens em Sopa de Lágrimas são extremamente vívidos. O realismo da narrativa consegue ser dramático em certos momentos, cômico em outros, e, em determinadas situações, o leitor simplesmente não sabe dizer exatamente que emoção está sentindo, pois algumas histórias são apenas situações corriqueiras. Você deve estar pensando: “que chatice”. De fato, esse tipo de realismo dificilmente se vende pela sinopse, mas Hernandez cria personagens tão ricos e verdadeiros que tudo flui de maneira muito natural, colocando o leitor como um voyeur quase onisciente desse ambiente.

Os traços e a diagramação são simples e eficazes. Dificilmente o leitor vai parar para analisar cada traço, pois a narrativa imprime um ritmo que faz o olho se direcionar diretamente de quadrinho a quadrinho. Entretanto, em determinados momentos, quando há algo acontecendo em segundo plano, a composição faz com que o olhar naturalmente fique mais pausado. Um trabalho pensado para funcionar exclusivamente em sua própria mídia.

Se pode-se falar de algum defeito, talvez seja que ler Sopa de Lágrimas nesse formato de compilação pode cansar um pouco. É claro que isso não é um problema da narrativa em si, pois ela foi concebida para ser lida periodicamente, mas como esta resenha é sobre esse formato, é bom avisar que ler as histórias de uma vez talvez não seja a melhor opção.

Sopa de Lágrimas

Olhem só o robert Crumb azarando no primeiro quadro!

Com um realismo que impressiona e personagens tão verossímeis que parecem existir no mundo fora da nona arte, Sopa de Lágrimas é um trabalho de alta qualidade e sensibilidade ímpar. Gilbert Hernandez consegue provar que o preto e branco pode ser tão real quanto a carne e o osso.

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