Um dos exemplares menos lembrados da Invasão Britânica, momento em que a DC apostou nos talentos de roteiristas vindos do outro lado do Atlântico (assunto que rendeu até um episódio do nosso podcast), Shade se encaixava nos padrões que costumavam atrair os escritores então recém chegados. Um personagem pouco conhecido, relativamente deixado de lado na casa, o que garantia uma liberdade criativa quase total para que fosse reformulado, dando origem a uma nova série. Sem muitas amarras comerciais, nem a obrigação do rótulo “super-herói”, Peter Milligan não deu apenas a sua versão para o personagem, mas também mostrou sua impressão sobre os EUA.
A versão original foi criada por Steve Ditko – criador de um certo aracnídeo para a concorrente – em 1977. Rac Shade era um agente do planeta Meta, injustamente acusado de traição e condenado a morte. Fugindo para a Terra, ele rouba um traje que permite um certo grau de vôo e cria um campo que o protege, além de projetar sua própria imagem distorcida, que varia de acordo com seu estado mental. O título Shade, The Changing Man, separado do restante do Universo DC, durou oito edições, mas – logo após o advento Crise nas Infinitas Terras – o personagem foi retomado, fazendo parte do Esquadrão Suicida.
Em 1990, Peter Milligan – depois de estrear na DC com Skreemer – assume um título homônimo, depois incorporado ao selo Vertigo. A Panini lançou a edição Shade, O Homem Mutável – O Grito Americano com os seis primeiros números desta série que durou até o #70, com capa cartonada de boa gramatura, mas papel jornal no miolo. De qualquer jeito, não é por isso que alguém deveria deixar de comprá-la. Aqui, este Shade é, basicamente, um poeta melancólico de outro planeta, enviado para deter uma onda de loucura que ameaça consumir a Terra. O traje M – Miraco antes, Madness (Loucura) nesta fase – das histórias originais foi reimaginado como algo capaz de distorcer a realidade.
A trama tem início a partir do pesado drama de Kathy, cujos pais foram assassinados por um louco no momento em que ela chegava para visita-los. Piorando o cenário, seu noivo é morto ao tentar deter o assassino, mas pela polícia, em um flagrante caso de racismo institucionalizado no sul dos EUA. Não bastando isso, ela ainda carrega a culpa de ter parado durante a viagem e chegado tarde demais. Durante a execução do assassino na cadeira elétrica, Shade manifesta-se neste mundo através do corpo dele, encontrando depois Kathy do lado de fora da prisão. Em uma virada bizarra, a garota acaba obrigada a ajudar na fuga, sem compreender inicialmente que aquele não é o mesmo homem que arruinou sua vida.
Mesmo antes que essa dupla improvável se formasse na narrativa, Milligan já estava construindo seu retrato do lado podre daquela nação. A partir daí, o conjunto se torna um road movie psicodélico, escancarando alguns tópicos bem inconvenientes, já que a insanidade que toma conta da realidade – corporificada em uma entidade chamada Grito Americano – prova que tem como padrão desenterrar o que existe por baixo das ilusões norte-americanas. A jogada no título se perde na tradução, infelizmente, mas O Grito Americano no original é The American Scream, uma alusão corruptiva ao Sonho Americano – The American Dream.
O assassinato de Kennedy é utilizado como pano de fundo no primeiro caso, discorrendo sobre várias teorias conspiratórias e como a paranoia destrói a vida de alguns cidadãos. Em seguida, fechando a edição, o enfoque vai para um retrato nada lisonjeiro de Hollywood, a fábrica de sonhos com sua cultura da celebridade. Em ambos os casos, os simbolismos utilizados por Milligan são absolutamente interessantes em sua essência, como a Esfinge com a cabeça do presidente, embora nestes primeiros números as coisas se resolvam de uma forma um tanto fácil. Ainda assim, o roteiro garante a vontade de conferir os próximos volumes.
Sobre a arte, Chris Bachalo – consagrado em duas minisséries da Morte, irmã de Sandman – ainda não havia definido o estilo pelo qual é conhecido hoje, mas seu traço foi mais que suficiente para a profusão de situações estranhas que encontramos ali, com uma narrativa visual que vai do funcional, nos momentos de calma, à ousadia – ainda contida – que se tornaria característica dele. Talvez o estágio em que ele se encontrava como desenhista naquele momento, um pouco mais próximo do clássico, tenha ajudado no clima. Shade, apesar de toda loucura descrita, consegue fazer o leitor pensar na realidade que inspira aquilo.
A publicação encadernada de Shade, O Homem Mutável – O Grito Americano é mais um favor que a Panini faz aos leitores brasileiros. Os fãs da fase da Invasão Britânica agradecem e que venham os próximos volumes.