“Aprendemos assim a não usar duas palavras onde apenas uma basta, a eliminar certos detalhes não essenciais e, ao mesmo tempo, a escolher cuidadosamente todos os elementos que permitem a boa compreensão de uma narrativa. Aprendemos a usar somente o necessário, nada mais, nada menos.” – Milo Manara, sobre o exercício de criar histórias curtas.
Não é novidade que a limitação nas artes pode se tornar um estímulo. Contornar qualquer tipo de restrição exige mais do artista e pode trazer resultados surpreendentes, que talvez não tivessem o mesmo brilho se realizados com liberdade plena. Claro que os quadrinhos, enquanto meio de produção, não tem as mesmas dificuldades técnicas do audiovisual, por exemplo, além do mercado europeu não evitar os temas adultos. Portanto, é possível que o único obstáculo a ser contornado por alguém, atuando neste meio, seja o número de páginas disponível.
Em Quimeras, que a Editora Veneta publica em lançamento duplo com Câmera Indiscreta, temos uma coletânea de histórias que Milo Manara criou nestas condições, destinadas a integrar antologias diversas. É uma ideia bacana reuni-las em um mesmo volume, já que assim podemos comparar várias situações onde o genial artista abraçou o desafio de trabalhar com um espaço limitado. Além do belíssimo traço e o erotismo característico dele, percebe-se que Manara sentia-se muito à vontade nestas situações, deixando a imaginação solta em narrativas surreais, mas nem por isso incapaz de trazer significados mais diretos quando optava por um realismo maior. Se você já conhece o autor, não é preciso citar que esses conteúdos jamais são diluídos em explorações vulgares do corpo feminino.
O título do álbum não poderia ser mais adequado, já que a espontaneidade de Manara produziu pequenas pérolas que provocam os mais diversos sentimentos. Da primeira à última das 120 páginas, tudo parece valer uma reflexão mais profunda que ultrapassa – e muito – o simples entretenimento escapista. Logo no início, ele nos brinda com uma bela homenagem a Hugo Pratt e seu Corto Maltese, dando a exata medida do que espera pelo leitor nas próximas páginas. Entre outras histórias e ilustrações que são puro realismo fantástico, ele também coloca os pés no chão em uma narrativa sobre a censura na arte, protagonizada pelo pintor renascentista Paolo Veronese, um tema que o quadrinhista revisitou em seu recente Caravaggio – A Morte da Virgem.
A passagem de Milo Manara por uma certa aldeia gaulesa, conhecida por seus moradores irredutíveis, também está na edição, assim como sua contribuição a uma figura icônica do erotismo nos quadrinhos: Barbarella. Bolero, publicada em 1999, também chama muita atenção por mostrar o sexo presente nas demonstrações de força e poder ao longo da história do mundo. Sem falas e apenas com figuras enfileiradas, foi possível criar uma previsão pessimista para o novo milênio.
Quimeras é uma edição de luxo que faz jus ao seu conteúdo. Além da capa dura, boa impressão e cada história traz a informação de sua publicação original. Uma aquisição que vale a pena para qualquer fã de HQ’s, junto com seu álbum irmão comentado no segundo parágrafo, é claro. É um clichê dizer que algo de Manara é imperdível, então fica a recomendação para o leitor que procura uma experiência verdadeira em sua leitura, o que não é nada surpreendente vindo deste autor, que também parece ter vivenciado algo diferente em suas criações.