Permissão para falar em primeira pessoa. Obrigado.
A vida, para a imensa maioria das pessoas, não é uma viagem numa Autoban alemã. Está mais para uma fuga em uma BR-116. É cheia de solavancos, acidentes, batidas e não raramente você se vê em choque no acostamento se perguntando “o que diabos aconteceu?”, depois de ter sido prensado ou arremessado ali. Mas, tal qual uma estrada, existem partes mais tranquilas e partes mais perigosas. Na maior parte do tempo, o que realmente lembramos é a aventura, a vista e o deleite da viagem em si.
Quando se chega na casa dos trinta, como eu, você já tem bagagem o bastante para começar a pesar algumas coisas na vida. Perspectiva sobre de onde você veio, para onde você vai, sobre o que você está fazendo. Também é a fase em que você é brutalmente interpelado por aquelas decisões patéticas sobre emprego (que tipo de idiota escolhe estudar filosofia como primeira faculdade, e por que eu realmente acreditei em algum momento que isso daria certo?), e ainda mais patéticas sobre relacionamentos, no caso de alguém que, como eu, ainda não está devidamente assentado.
Isso tudo é o que me faz pensar sobre pensar sobre Placas Tectônicas (La Tectonique Des Plaques), da francesa Margaux Motin – o que provavelmente deixaria a autora feliz. A história se passa, para usar a analogia do título, em um aftershock (nome dado aos pequenos tremores que seguem um grande terremoto) da vida da autora. Em crise na sua própria fase dos trinta, ela decidiu lidar com seus próprios demônios da maneira que conseguiu: escrevendo, pintando e desenhando. Fazendo arte. E que bela arte.
O amigo leitor mais desavisado pode até questionar se se trata realmente de um quadrinho, mas quando se conhece um pouco mais da personalidade de Margaux, dá para entender porque a sua pequena obra é tão pouco ortodoxa – ela própria não é assim. A autora está se lixando para a estrutura narrativa canônica. Ela quer expor suas entranhas, usando para isso toda a potência que o espaço em branco uma história em quadrinhos permite. Ela preenche as páginas não com meros desenhos e linhas escritas, mas consigo mesma. A expressão graphic novel – novela gráfica – é absolutamente inapropriada aqui. Sentimentos gráficos seria uma expressão mais aceitável.
Pudera. Margaux passou algumas poucas e boas na sua própria fase dos trinta, lidando com o fracasso de um casamento que custou um tremendo investimento emocional, que incluía forçar-se a ser alguém de quem ela não gostava – em última instância, alguém que ela não era. Após o término, precisou encarar as dores e as delícias da maternidade. Muitas vezes, ter um filho pode ser uma luz em um período de trevas na vida de alguém, mas, em outros momentos, pode ser só uma pedra no sapato. Todo mundo (como eu) sabe que a reação quase imediata a um término traumático é regredir a uma forma meio comicamente triste de “adultescente”, aquele breve limbo das nossas vidas em que nós acreditamos ser adultos o bastante para tomar nossas próprias decisões maduras, mas que normalmente resultam em idiotices ou desastres particulares. Imagine ainda por cima ter que lidar com a responsabilidade da educação de uma vida em formação! Pelo menos por essa eu ainda não passei. Pobre Margaux.
De quebra, sempre vem o “outro” relacionamento. Aquele que se segue e que tem que, inevitavelmente, lidar com os efeitos do desastre pessoal que o antecedeu. Margaux, como todos nós, sofre com questionamentos particulares – as dúvidas de se abrir novamente para um amor, adaptar-se ou não às características da nova pessoa, criar expectativas ou curtir e ver no que aquilo vai dar. Muitas dúvidas! Como se trata de um processo de tentativa e erro, muitas risadas também. Nossa protagonista abraça sua “adultescente” interior, desenha a si mesma em situações cômicas e constrangedoras, sem medo de ser julgada, aí entendemos algo meio óbvio – no fundo, ela queria fazer uma espécie de terapia em grupo com quem quer que lesse a HQ. Um divã em forma de quadrinhos, onde junto com a autora, nós interpelamos nossos erros e acertos, nossos arrependimentos e nossas saudades. O que Margaux quer é que, junto com o que ela (acredita que) aprendeu sobre si mesma, nós possamos aprender um pouco mais sobre nós mesmos.
A Editora Nemo está de parabéns pela edição também. Com papel off-set de boa gramatura e impressão, formato 17 × 24 cm, capa cartonada com orelhas e uma pequena biografia da autora, dá para carregar e curtir em qualquer lugar e rir sozinho com as danças ridículas e as músicas bregas que ela tanto gosta no quadrinho. Margaux aprovaria.
Por ser a obra de uma mulher abrindo seu coração para os leitores, talvez muita gente caia no equívoco de acreditar que se trata de uma obra feminista. Não é. O que aconteceu com Margaux também aconteceu e acontece com todos nós. Só eu sei o caminhão de merda da vida que eu carrego nas costas todos os dias. Só eu sei das alegrias e das tristezas que eu tenho em mim e que definem quem eu sou, condição de cada leitor que estiver com Placas Tectônicas nas mãos. Não se trata de levantar bandeiras. Se houver a necessidade de rotular, então seria melhor chama-la de humanista.
O título não poderia ser mais apropriado. Todos nós somos um pequeno mundo composto por diversas partes que se encaixam, assim como nosso pequeno planetinha é composto por placas tectônicas na sua delicada crosta. De vez em quando, essas partes se desentendem, convergem violentamente, provocando imensos desastres. Como grandes terremotos, muitas vezes olhamos os resultados acreditando ser impossível se recuperar daquilo.
Mas a gente sobrevive e segue em frente. Porque, no final das contas, todo grande terremoto nas nossas vidas é apenas uma oportunidade de nos reconstruir.