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O Último Voo das Borboletas – A arte pertence a todos!

O Último Voo das Borboletas é um verdadeiro caldeirão de influências que se tornam uma obra bela

O Último Voo das Borboletas, mangá de Kan Takahama recentemente inserido no catálogo do Pipoca & Nanquim, além de ser inerentemente belo é também um caso interessante de retroalimentação cultural. Aparentemente se tratando de uma narrativa e estética tipicamente japonesas, existem algumas camadas a serem exploradas aqui.

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A trama se passa na transição da Era Edo para a Era Meiji – após 1868 – quando o Japão deixa seu modelo feudal e isolacionista para trás e volta a realizar comércio e intercâmbio como países do Ocidente. É uma seção da história do Japão que colocou em xeque o presente e o futuro do país. Nesse contexto, nos é contada a história de Kichou, a mais desejada prostituta de um renomado bordel em Nagasaki.

Kichou é de uma atração incomparável e irresistível não apenas por seus dotes físicos e artísticos, mas também por uma atitude inefável, que faz com que homens se rendam a ela na cama, mas fora também. Kichou é distante, mas não fria; como se se colocasse propositalmente em um pedestal, forçando os homens a alcança-la, e não contrário.

No entanto, a atitude de Kichou não é completamente inata. Em alguma medida, é uma escolha consciente para esconder seu maior segredo – seu verdadeiro amor por um único homem, algo inaceitável para alguém da sua posição e profissão. A partir daí o mangá mergulha em diversos níveis narrativos, que envolvem tanto aspectos particulares e interpessoais dos personagens quanto sociais e culturais desse momento pivotal da história nipônica.

Percebe-se que é uma trama centrada nessa enigmática presença feminina, de poder perene imersa em uma sociedade que, mesmo hoje, ainda é apegada ao seu patriarcalismo quase ao ponto da misoginia. Não é e nunca foi fácil ser mulher no Japão, e o drama das damas do entretenimento sempre foi muito caro a muitos artistas locais, principalmente no período pré-Guerra.

É preciso frisar que Kichou não é uma geisha, como se poderia imaginar – até porque, como acontece frequentemente com culturas distantes e distintas que muitos ocidentais em sua monumental pretensão acreditam compreenderem plenamente, o conceito de geisha é muito mais complexo do que simples cortesãs e tão incongruente quanto possível de prostitutas. Kichou é, de fato, uma tayuu – uma prostituta, e não uma geisha, embora suas atribuições vão muito além da sua contraparte ocidental.

Ponte de culturas

Tergiversamos sobre esse contraste ocidental não por mero floreio, mas por uma característica própria do mangá. A autora pertence a um movimento contemporâneo do mangá chamado de noberu manga, ou nouvelle manga, segundo seu léxico de inspiração. A ideia são autores de quadrinhos japoneses que buscam influência ou objetivamente emulam características da clássica nouvelle vague sessentista francesa, assim como trejeitos da bande dessinée franco-belga.

E aqui retornamos ao início do texto: Um caso de retroalimentação cultural. Essa tese, de completa responsabilidade deste colunista, aponta no sentido de uma ponte cultural que é normalmente ignorada ou minimizada na história de outra arte: O cinema.

Embora a nouvelle vague seja de fato um movimento inicialmente endêmico ao cinema francês – inclusive por isso seu volume não se estendeu por muito mais do que um par de décadas – sua estética não é exclusivamente sua. Explicamos: As narrativas e temas tratados pelo movimento francês denotam fortes influências de autores como Sartre e Camus, além de se dedicarem quase que exclusivamente a um desconstrucionismo experimentalista como forma de iconoclastia e combate ao velho cinema – daí a expressão nouvelle vague (Nova Onda).

No entanto, essa é a motivação. Esteticamente falando, cineastas como Truffaut e Godard apresentam narrativas extremamente cadenciadas, que valorizam longos planos e constroem muito de sua interpretação em torno do silêncio – no Ocidente, acostumado com o ritmo mais frenético do cinema hollywoodiano, isso foi um tremendo choque. Sabe para quem esse estilo de filme era só mais um dia de trabalho? Pois bem, os japoneses.

Embora raramente recebam os devidos créditos no ocidente, cineastas como Yasujiro Ozu e Kenzo Mizoguchi tem como base estética de seu cinema – do mais alto nível, por sinal – essas mesmas características, por sua vez influenciadas pelos teatros clássicos locais. E brilharam de tal forma estes cineastas, com estilos tão característicos, que é impossível não encontrar paralelos estéticos entre seu trabalho e os filmes da nouvelle vague francesa.

Boas influências

Ademais, se existe qualquer dúvida sobre o apreço francês pelo imaginário nipônico, lembramos que Hiroshima Meu Amor e O Samurai se tornaram referências do cinema ao fazer essa ponte entre culturas aparentemente tão idiossincráticas de forma belíssima. No caso, dedicamos esse par de parágrafos para elaborar um paralelo mais condizente com o que O Último Voo nos apresenta: a obra do supracitado Mizoguchi.

Como dissemos, o tema de mulheres neste estilo de vida é algo bastante caros aos artistas japoneses após a Restauração Meiji, mas poucos foram tão apegados a essas figuras e às vicissitudes de suas vidas quanto Mizoguchi. Não são poucos os clássicos produzidos por ele calcados nesse tema – não necessariamente sobre tayuu, mas sobre a posição da mulher na nova e modernizada – ou em busca da modernização – sociedade japonesa.

Se o amigo leitor não conhece, convido-o, após ler O Último Voo, a assistir obras como Oharu: A Vida de Uma Cortesã, As Irmãs de Gion e, principalmente, A Rua da Vergonha. Produzidos entre os anos 30 e 50, esses filmes ecoam o drama da vida de mulheres marginalizadas e sua elusiva relação com as figuras masculinas desses períodos em meio à sociedade japonesa.

Neles, principalmente em As Irmãs, é possível perceber o ritmo cadenciado e o silêncio que são tão característicos do cinema japonês, que por sua vez influencia o cinema francês, que agora parece lançar luzes de inspiração sobre mangakas. E se tal tese parece estranha, nos basta apenas lembrar do conhecido fato de que o apreço dos próprios japoneses pela arte e cultura ocidental nos pós-Guerra, e ainda mais conforme avançamos no tempo, não é pouco.

Belo, ainda que frugal

E é isso que torna O Último Voo das Borboletas uma obra tão distinta: O caldeirão de influências de Takahama é um caso raro de “origem e retorno” de influências, sem deixar de ter uma característica totalmente própria.

Se seus traços são muito mais limpos e claros do que normalmente se vê em mangás – possivelmente uma busca por uma ponte com a BD franco-belga – sua narrativa cadenciada e autocontida, que muitos leitores inclusive podem considerar erroneamente como “lenta”, dá o tom tão típica e inevitavelmente nipônico de uma história assim.

Takahama não se priva de criar planos abertos e contemplativos, mas ricos e bem definidos em detalhes. Da mesma forma, sua narrativa, embora possua um bom número de surpresas e revelações, não se prende ao choque provocado por elas.

Ao contrário, ela se atém à perspectiva dramática particular que os personagens têm desses exemplos. A ideia não é construir uma arrebatadora história de arroubos chocantes, mas sim uma contínua e decrescente cadeia de eventos que denunciam a frugalidade de nossas vidas. No geral, O Último Voo é uma obra bastante curiosa. Anuncia-se como influenciada por estrangeirismos, mas não poderia ser mais tipicamente japonesa.

Para nós, leitores, que seja o primeiro de muitos voos assim.

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