Jeff Lemire e o desafio da paternidade em O Soldador Subaquático
Não é fácil abraçar uma responsabilidade que vai mudar sua vida para sempre. O receio frente ao novo é uma característica humana, potencializado quando parece que temos pouca ou nenhuma escolha sobre isso. Digamos agora que essa resistência e temor sejam agravados por um momento marcante vivido na infância, diretamente relacionado com a mudança que virá logo. O desconforto vira pavor e esconder-se parece o único alento. Em O Soldador Subaquático (The Underwater Welder), Jeff Lemire trabalha isso inspirando-se em uma experiência pessoal.
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O álbum, lançado originalmente pela Top Shelf em 2012, foi publicado no Brasil pela Mino em 2016. No litoral canadense, acompanhamos a rotina de Jack, que ganha a vida com a ocupação que dá título à HQ, realizando manutenção em uma plataforma petrolífera. Com a esposa chegando ao fim da gravidez, falta pouco para que a vida dos dois mude de forma irreversível, o que parece incomodá-lo. A dedicação ao trabalho e o consequente tempo que passa fora de casa é claramente uma fuga desta realidade.
Antes de julgar nosso protagonista, é preciso ter em mente que se trata de alguém atormentado. O motivo, é claro, tem a ver com seu pai, também um soldador subaquático, que teve seu casamento desfeito pelo alcoolismo e pela busca por tesouros que nunca encontrou. O pequeno Jack morava com a mãe, enquanto aguardava os poucos momentos que podia passar com o pai – entre uma ou outra promessa não cumprida. Até o dia em que desapareceu no mar, deixando o filho esperando por ele em uma noite do Dia das Bruxas.
Amargando esse trauma pela vida adulta, Jack tem sua reviravolta ao encontrar um objeto no fundo do mar. A partir daí, a história ganha contornos muito sutis, que o leitor deve interpretar da maneira que melhor lhe convier, como se fosse um episódio estendido de Além da Imaginação. Essa comparação é feita, inclusive, pelo produtor e roteirista de cinema Damon Lindelof, que assina o prefácio do álbum. O tal artefato servirá para que o protagonista se abra a nós e a si mesmo, mas não sem antes enfrentar finalmente seus piores medos.
Um roteirista versátil se abrindo com seu público
Jeff Lemire tem estrada nos quadrinhos. Consegue manter um padrão de qualidade nos roteiros, transitando entre publicações da DC, como Arqueiro Verde – Máquina Mortífera, e HQ’s menos comerciais, como Black Hammer ou Nada a Perder. Neste último também desenhando, mesmo caso de O Soldador Subaquático.
Aguardando o nascimento de seu primeiro filho enquanto produzia o álbum, ele usou essa experiência pessoal como combustível criativo. Fica bastante evidente que a densidade dramática desta história se deve ao envolvimento emocional direto de seu autor, fator fundamental para nos importarmos com Jack e sua jornada. O esmero na criação desse arco dramático também se mostra em outros detalhes.
A importância dada ao objeto encontrado no fundo do mar, quando enfim descobrimos todo o significado que ele carrega, traz metáforas simples, porém muito eficientes. A necessidade do personagem em resolver suas pendências, coisas que ele largou em recantos distantes em sua memória, encontra eco na rotina de mergulhador. Lemire emula um processo terapêutico através de seu conto, aproveitando o cenário aquático como uma conveniente representação do inconsciente. Quem acompanha o trabalho de David Lynch talvez tenha lembrado do título de seu livro, Em Águas Profundas.
A coisa vai mais longe se trilharmos esse caminho. Não apenas cabe a reflexão de Jung, sobre o despertar daquele que finalmente olha para dentro de si. O relacionamento de Jack com seus pais abre também as possibilidades de uma análise freudiana, confirmando a rica construção de Jack dentro deste roteiro. Com tanta referência, seria de se esperar que algo da sensibilidade se perdesse, mas não é o caso.
Quem não perceber, ou não estiver interessado em nada disso ao ler O Soldador Subaquático, não deixará de ser contemplado com uma história muito tocante que nada tem de complicada. A carga dramática é muito bem trabalhada e recompensa a todos que chegarem ao seu final, independente das interpretações que tiverem.
Ilustrando o próprio roteiro
Os desenhos e a narrativa visual de Lemire ajudam a embarcar na história. Somente ele mesmo poderia ilustrar um texto tão pessoal, valendo-se da estilização bem pouco comercial que seus fãs já conhecem. A simplicidade estética atua em favor de temáticas como essa, que falam mais a um lado humano. Não são painéis bonitos e nem foram criados com essa intenção, mas, com a diagramação dinâmica, conferem muita fluidez ao conjunto.
A decupagem em O Soldador Subaquático confirma duas coisas. Uma é a importância de uma narrativa limpa e bem pensada, que se sobrepõe à necessidade de uma arte que poderia ser chamada de bela. Não é uma questão de advogar por um abandono completo de estilos mais clássicos ou acadêmicos, pois eles continuarão tendo seu lugar nesta mídia. Por outro lado, é preciso reconhecer que eles não valem quase nada sem o domínio da linguagem das HQ’s em todos os tópicos.
O segundo ponto diz respeito justamente à destreza de Jeff Lemire na tradução visual de seu roteiro. Na cadência dos eventos, ele demonstra segurança ao sugerir a passagem do tempo, sabendo exatamente quando acelerar ou reduzir através da quantidade de quadros que utiliza. Quando é preciso, também sabe provocar no leitor a sensação de abandono, desamparo e solidão através de enquadramentos mais abertos.
Encerrando sua história de forma econômica, no melhor sentido do termo, apoiando-se apenas em imagens que dizem tudo (o que é ótimo, já que estamos falando de uma mídia visual), a sinergia não se perde. A segurança do autor sobre onde e como queria chegar se mantém, recompensando o público mais passional tanto quanto o mais tecnicamente crítico.
Com O Soldador Subaquático, Jeff Lemire dá argumentos a favor da teoria de Will Eisner, sobre escritores de HQ que ilustram seu próprio texto. Deixando de lado essa discussão, ele entregou uma obra pungente que prende e entretém da primeira à última página.
O estímulo a mergulharmos fundo em nossos próprios mares particulares é um belo bônus.