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O Processo – Homenagem a Kafka passa longe do “kitsch”!

Quais os riscos assumidos por quem decide levar uma obra chave da cultura universal para uma linguagem jamais imaginada pelo autor original? Um cruel assassinato da mensagem dos criadores, uma piada de mau gosto ou uma desonra a um dos pilares da inteligência humana? São definições agressivas, mas comumente aceitas pelos eruditos de palanque. Da Alemanha surgiu o termo kitsch, favorito por defensores da “alta cultura” para designar a adaptação vulgar e sem critério de referências da cultura erudita apenas para consumo da massa. Apresentam-se como artístico,  mas não passam de apropriações sem valor comercial ou cultural.

Franz Kafka

Franz Kafka

Quando em março de 2014 a editora Veneta, de vertente underground, lançou a adaptação para os quadrinhos de O Processo, clássico de Franz Kafka e uma das mais importantes obras da literatura universal, nenhum outro termo poderia vir a mente de quem leu e se atormentou com a angústia de Joseph K., do que mais um desrespeitoso kitsch estava na praça. Uma ideia arrogante e prepotente de quem vive enclausurado na própria vaidade intelectual, sem permitir abrir-se para o fabuloso mundo que a sensibilidade humana pode oferecer, sem ater-se a dogmas que apenas podam a nossa capacidade de ir além do já ponto já atingido por alguém.

A Obra de Kafka

Ao lado de O Castelo e Metamorfose, O Processo faz parte do conjunto de obras que tornaram o tcheco Franz Kafka um adjetivo para qualquer produção artística que explore de maneira contundente a angústia, a burocracia inútil e a solidão na vida do homem contemporâneo. No texto que Kafka desistiu de concluir em vida (como aconteceu em quase todos os seus trabalhos), é possível acompanhar de forma fria e distante, a luta de um homem contra uma acusação criminal que ele não consegue entender. Bancário (símbolo burocrata para Kafka, ele próprio profissional da área), sem amigos, sem grandes posses materiais – mas também longe da pobreza que poderia lhe dar um sentido para a vida, sem vontade (ou capacidade) para entregar-se a qualquer envolvimento unicamente emocional. Em um dia comum de trabalho, Joseh K. acorda por homens desconhecidos que se apresentam como oficiais de Justiça e lhe dão voz de prisão, sem ao menos lhe dizer sobre qual crime estava sendo acusado. Após uma estranha conferência em sua casa, K. não é preso, mas inicia uma angustiante peregrinação para  cumprir as diferentes etapas de seu processo.  Sem nunca entender qual crime cometera, o jovem enfrenta escrutínios estranhos, visitas a fóruns mais do que incomuns, passa por escritórios inimagináveis e enfrenta um bizarro processo de acusação, julgamento e condenação.

Anthony Perkins, de Psicose, foi Joseph K em uma versão cinematográfica de O Processo!

Anthony Perkins, de Psicose, foi Joseph K em uma versão cinematográfica de O Processo!

Dono de uma linguagem contundente, até mesmo cortante, Kafka perturba o leitor com a angústia do personagem que ele soube compartilhar como ninguém. É impossível ser indiferente ao texto do escritor tcheco. Kafka coloca em seu Joseph K. a voz de seu próprio espírito, provavelmente inaudível na vida real. As burocracia sem sentido, as regras de existência que somos obrigados a seguir, mas não que não se sabe de onde surgiram.  O Processo é uma metáfora facilmente entendida por quem segue a vida como acusação a um crime desconhecido. Uma transgressão que sentimos ter sido grave, mas antes de nos revoltarmos por nossa inocência (a qual nós mesmos temos dúvidas), somos obrigados a cumprir as tediosas etapas de um processo que sabemos inútil, que fatalmente nos levará a condenação. Tal premissa, que Kafka tão bem exprimiu em seu texto relutante, contribuiu para que o autor se tornasse um dos gênios mais formidáveis que o mundo já produziu. A despeito de sua breve e sofrida vida, sua obra é para corajosos que não se assustam  com os monstros da própria existência.

Os autores

David Zane Mairowitz

David Zane Mairowitz

Esta versão de O Processo é uma adaptação do escritor e dramaturgo norte-americano, David Zane Mairowitz e da célebre quadrinista francesa Chantal Montellier. Apesar de mexerem em um vespeiro, a assinatura da dupla já serviria para intimidar quem se coloca a julgar sem ao menos tocar no resultado do trabalho dos dois. Mairowitz é um intelectual especializado em literatura inglesa e filosofia. Há quase 40 anos trocou os EUA pela Europa, divididos entre Inglaterra, França e Alemanha. Especializado em Kafka, produziu célebres adaptações de O Castelo e O Processo para o teatro, além de estudos e contos inspirados na proposta kafkaniana. Foi um dos mais respeitados expoentes da cultura underground na Inglaterra e recebeu diversos prêmios internacionais em seus quase 50 anos de carreira.

Chantal Montellier

Chantal Montellier

Também representante da cultura alheia ao mainstream, Chantal Montellier é uma das mais respeitadas artistas dos quadrinhos franceses. Influenciada pelas artes plásticas, que estudou e fez carreira nos anos 1970, Montellier ganhou fama e respeito ao adotar o traço realista para denunciar as opressões sociais e as sutis formas de violência do mundo atual. De viés feminista, a cartunista cavou espaço em um universo predominantemente masculino em uma época que as reinvindicações de esquerda ainda começavam a ser pauta pública na França.

A escolha de Mairowitz e Montelellier para a quadrinização da obra de Kafka (partindo do pressuposto que ela tinha que ocorrer) não poderia ser mais acertada. O primeiro é íntimo do universo do escritor e um expoente crítico da contracultura europeia. A segunda é dona de um traço transgressor que muito se aproxima da aura kafkaniana. Seu repertório como artista plástica rendeu-lhe gabarito suficiente para transmitir o visual perturbador que o escritor descreveu tão bem.

O Processo em quadrinhos

O primeiro ponto a ser notado por quem abre a publicação da editora Venta é a opção de Montellier em fazer de Joseph K. uma reprodução fiel do rosto de Franz Kafka, celebrizado em seu retrato mais famoso. Tal característica é facilmente notada por quem já teve contato com a obra original, mas essa adaptação é amplamente voltada para o público já admirador do romance clássico. Embora as adaptações para novos formatos sirvam, sobretudo, para atingir públicos fora da esfera de alcance da publicação inicial, essa versão não se constrange em lutar pelo fã da literatura – mesmo que seja um fã intencional e não necessariamente real. O leitor de Kafka sabe que seus personagens são representações dele mesmo, mas neste ponto, o que poderia ser um ponto a favor da cartunista, acaba sendo um lance desfavorável para quem pretende homenagear um mito. Como primeira impressão, tal constatação pode afastar o leitor original alvo da publicação, que encontrará nos desenhos da cartunista, logo nas páginas iniciais, diversas referências ao destino perturbador do protagonista.

O Processo

Mantendo o clássico preto e branco de suas produções, Montellier se sobressai em seu realismo, destacando cada detalhe do quadro, chamando a atenção para a desorganização do ambiente, um reflexo do que se tornaria a vida do personagem. A desenhista também optou por introduzir nos quadros diversos ícones alheios à narrativa, mas que muito bem representam o pesadelo e o pessimismo que assombram Joseph a cada passo.

O processo

Mairowitz adotou uma narrativa única, sem divisão por capítulos, que soma a uma disposição dos quadros que se alterna em formatos para transmitir a rigidez e a lentidão do sistema judiciário, como também a desordem e irracionalidade da situação vivida. O recurso reforça a sensação de “arrastamento” que Joseph vive, sem tornar a leitura cansativa. Repare na transformação dos cenários e no uso da iconografia visual típica do expressionismo alemão para representar os sonhos do protagonista e a sua impotência frente ao rolo compressor do sistema. Nesses aspectos, em especial, a parceria da dupla de autores de sobressai, onde as especialidades de cada um estão representadas.

O Processo

Para efeitos de comparação, obviamente, a versão em quadrinhos é inferior ao livro de 1925. A opressão do Sistema e a impotência do homem frente à existência é muito mais forte e narrativamente eficiente no texto original. No entanto, o desenho representa com magnífica qualidade o pesadelo da mecânica da opressão, recheando cada quadro com as mais bizarras figuras. O desfecho consegue, de modo diverso ao do livro, transmitir a mesma sensação de perda, vazio e silêncio. Montellier e Mairowitz conseguiram uma obra autoral, mesmo que limitada pelo compromisso que uma adaptação impõe. O resultado é uma obra ímpar, que deve ser lida como tal, para que se concretize a missão que arte deve ter de contestar e expor que os Homens tentam esconder.

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