As ficções distópicas sempre são uma faca de dois gumes, quando bem-feitas, é claro. Você analisa a qualidade do texto, a profundidade e a relevância do discurso, se satisfaz ao final por ter consumido mais um produto de qualidade, mas também é obrigado a carregar o fardo da reflexão sobre o que acabou de ver/ler. Sim, já que as obras sérias, que retratam o futuro de uma forma pouco animadora, estão – no mínimo – fazendo um alerta ou aludindo mesmo ao presente. Dependendo da época em que são produzidas e quando as conhecemos, tentamos comparar os contextos e isolar onde o autor foi mais preciso. Neste caso, não é muito agradável descobrir que uma alegoria deste tipo funcionava há trinta anos, continuou atual e observar o mundo hoje não nos permite uma previsão de mudança, a não ser para pior.
O Perfuraneve (Le Transperceneige), como história, tem o poder de causar este desconforto no leitor. Apresentando um futuro enfrentando uma nova Era Glacial, o pouco que sobrou da humanidade precisa viver dentro do trem que dá título à obra, que movimenta-se com mil e um vagões perpetuamente. Funcionando como um pequeno país, contando com administração política, clero e força armada, além da agricultura e pecuária que continuam a existir dentro destas condições, quem mais sofre é o povo dos últimos vagões. Com um evidente sistema de classificação social, quanto mais afastado da locomotiva, mais miserável é a vida, enquanto os privilégios são concentrados nas mãos de poucos, que usam o termo discriminatório “fundista” para se referir ao povo que está na outra extremidade do veículo.
É por puro desespero que Proloff, fugindo de suas condições difíceis, tenta passar aos vagões seguintes, quando é detido pelos militares. A notícia se espalha e Adeline, que faz parte de um grupo ativista tenta ajuda-lo, acabando também detida, mas a esperança surge quando o Presidente do Perfuraneve ordena que sejam escoltados até ele para uma reunião, onde devem encontrar soluções para o sofrimento de onde Proloff saiu. Começa então uma caminhada por todo o trem, onde descobrimos muita coisa sobre o funcionamento desta estrutura.
Criada no início da década de 1980 pelos franceses Jacques Lob e Jean-Marc Rochette, respectivamente roteirista e desenhista, para a revista (À Suivre), a HQ foi reunida em um único volume pela Casterman em 1984. Com o falecimento de Lob em 90, Benjamin Legrand assume os roteiros de duas continuações, O Explorador (1999) e A Travessia (2000), com Rochette novamente nos desenhos, porém com um estilo diferente. A edição brasileira da Aleph tem esta saga completa, contando com um posfácio bastante interessante de Jean-Pierre Dionnet, co-fundador da revista Métal Hurlant e amigo de Lob. O texto é complementado por várias artes de Rochette para a adaptação cinematográfica da HQ, ainda inédita no Brasil.
O primeiro terço do álbum, com a parte concebida pelo roteirista original, se não se destaca na arte – que apenas faz seu papel sem grandes pretensões – já esbanja disposição no texto, com seu conceito de sociedade desigual. Confinar tudo que sobrou da humanidade de um desastre natural, sem muita explicação de como ocorreu, em um veículo que se movimenta sem esperança de chegar a algum lugar, é muito simbólico. Na visão de Jacques Lob, o ser humano – salvo raríssimas exceções – parece não ter alternativa, a não ser repetir os mesmos erros da estrutura anterior, com o agravante hedonista de importar-se menos ainda com o sofrimento alheio, afinal há pouquíssima esperança mesmo.
Na segunda parte, com O Explorador, Benjamin Legrand expande o universo já estabelecido, situando-se anos à frente do fim da história anterior. Os elementos de ficção científica são intensificados e agora estamos em um novo trem, com os mesmo problemas de antes, mas com esta nova máquina é possível parar. Os Exploradores são treinados desde cedo para saírem com trajes especiais e vasculharem o exterior. Um deles, Puig Vallès, é responsabilizado pela morte de um colega e, por conta disso, enviado em uma missão suicida de onde ele milagrosamente consegue voltar. O jogo político em torno da sua pessoa é um dos pontos centrais deste capítulo, onde Legrand pega a bola chutada por Lob e segue em frente, não poupando absolutamente nada na crítica social. Neste caldeirão, entra a manipulação da massa indolente via TV, paranoia, falsos gurus, sacerdotes loucos por poder, burguesia hipócrita e muito mais.
Em seu terceiro ato, Legrand finaliza a saga de forma honesta e coerente, de acordo com a proposta original. A Travessia dá um sopro de esperança para estas pessoas, especialmente para o bem-intencionado Puig, mas em contrapartida o poder estabelecido continua sendo obstáculo para mudanças, assim como a falta de iniciativa de uma massa acomodada. Alguns detalhes um pouco mais surreais podem incomodar o leitor, que talvez escute algum eco da Nouvelle Vague (Alphaville, talvez?) ao passar por algumas páginas. Mesmo que assim seja, o objetivo foi cumprido e belamente ilustrado por Rochette, cuja arte ganha muito nestes dois capítulos seguintes, valorizando demais o roteiro.
O álbum O Perfuraneve é obrigatório. Um texto incisivo e contundente, acessível sem ser superficial, que vale discutir em uma roda de amigos ou em uma sala de aula. Indispensável para quem aprecia um bom roteiro, mesmo que nas comparações com o mundo real ele nos deixe desconfortáveis…
Ainda bem que todo bom leitor é um pouco (ou muito) masoquista!