Tolkien escreveu, após o sucesso de O Senhor dos Anéis, que ele não havia criado aquele mundo, mas sim o descoberto, pois um escritor apenas revela histórias que estão ocultas em outros lugares, outros mundos… E pouco importa saber de onde vem essas revelações. O que importa é a revelação em si, a história daqueles outros lugares e mundos.
É no mínimo curioso encontrar essa semelhança em um artista tão díspar de Tolkien como o aclamado Jean Giraud, o Moebius, pois – ao menos nesse aspecto – ambos concordam. Escrever, assim como desenhar, é muito mais a arte de revelar do que criar propriamente dizendo, já que a criação é domínio do divino. Em suas inúmeras obras, ele explorou as diversas facetas da glória e da miséria do ser e do que significa ser humano, especificamente falando. Em O Mundo de Edena, Moebius atinge seu apogeu como artista e como revelador do oculto, explorando os recônditos mais profundos do local onde o meramente humano finalmente consegue transcender as patéticas limitações terrenas e desponta, mesmo que de maneira temporária e sempre inexoravelmente frustrada: os sonhos.
A ideia de revelação nesta obra é até reforçada pela sua gênese. Seria de se imaginar que se trata de algo autoral, pois trata-se – pasme – de um produto de marketing. Em 83, Moebius recebeu uma encomenda da indústria automotiva Citroën, que queria “inovar” nos brindes de final de ano para os funcionários. Inusitado, mas não é o foco, pois é até de se esperar que o gênio criativo (ou revelador) de alguém como ele não iria se contentar com uma mera peça publicitária. Mas foi dessa proposta que nasceu o primeiro volume dessa hexalogia – Na Estrela – onde somos apresentados aos astronautas Stel e Atan. Na primeira história, uma espécie de prólogo – Os Consertadores – Moebius estabelece uma consciência muito simples: apesar das aparências, não é uma obra de ficção científica ou fantástica; estes são apenas o cenário pelo qual um mergulho profundo na psique do artista – visto que essa primeira história usa como referência um evento particular da vida do autor – se transformará em um mergulho na psique humana, criada através dos nossos instintos mais básicos e dos mitos, tão arraigados na mente coletiva da nossa espécie que se tornam mais orgânicos do que os próprios instintos. Não obstante, destaca uma característica particular de Stel, que é sua habilidade com máquinas e que será conceitualmente importante.
No restante do volume, temos um desenvolvimento dos protagonistas e a justificativa publicitária da obra. Stel e Atan apresentam características andróginas. O tempo e local em que a história se passa não são definidos. Só o que sabemos é que eles encontram uma espécie de estação espacial e, ao constatarem que ele se encontra vazia, se veem presos e arrastados pela gravidade do planeta logo abaixo, chamado apenas de “Bola de Bilhar”. Ao aterrissarem, tem como única referência uma luz que brilha distante no horizonte plano de Bola de Bilhar, e decidem chegar até lá em uma relíquia encontrada dentro da estação – um velho Citroën. Ao chegarem na luz, descobrem ser uma pirâmide, que está cercada por milhares de náufragos espaciais. Lá, Trollopen, um dos tripulantes da estação, explica que muitos estão ali há milhares de anos, mantidos vivos pelas energias oriundas da pirâmide. Stel cumpre seu destino, sendo chamado pela própria pirâmide – que se revela uma nave espacial – para pilotá-la e levar a todos ali para o mítico e paradisíaco mundo de Edena.
Para que está acostumado com a obra do autor, em Edena podemos perceber uma diferença gritante em relação as suas obras anteriores – a limpeza dos cenários e a economia dos traços. Conhecido pela profusão de detalhes nos seus desenhos, aqui vemos uma versão de Moebius mais próxima de Hergé, onde a amplitude dos cenários de Edena valoriza os poucos elementos em destaque neles, dando um tom mais épico a saga de Stel e Atana. A opção pela economia também se revela nas cores. A ausência de um excesso de traços e espaços a serem preenchidos faz com que as próprias cores sejam usadas como elementos narrativos. Moebius diz pouco em texto, mas revela muito através da escolha e da disposição dos elementos e das cores vibrantes dentro dessas visões cósmicas de Edena, promovendo uma espécie de mistura da filosofia do impressionismo com a execução de uma psicodelia beatnik.
Moebius, o revelador, percebeu que havia um imenso universo ali a ser explorado. Não contente com a mera peça publicitária – que de mera não tem nada – ele decide ir mais a fundo. Afinal, quanto mais sonhamos, mais revelamos do nosso eu mais íntimo, aquele escondido sob as camadas do inconsciente, da história e da civilização. Com algum exagero e de uma forma um tanto carnavalesca, poder-se-ia dizer que O Mundo de Edena é uma obra quase freudiana, afinal, citando o próprio, “a interpretação dos sonhos é a estrada real que conduz ao conhecimento do inconsciente na vida psíquica”.
No segundo volume, os Jardins de Edena, o autor conecta o sonho ao mito, transpondo Stel e Atan de seu cenário sci-fi high tech para o ambiente mais básico, o mito primordial da civilização ocidental. Não é necessário explicitar qual, pois o nome “Jardins de Edena” é autoexplicativo o bastante. Perceba que Moebius não está interessado em revelar seu mito onírico de maneira sutil, da mesma forma que, nos sonhos, cenários e personagens se sobrepõem uns aos outros sem muito alívio narrativo. Projetados pela pirâmide nesse ambiente idílico, só conseguem perceber o quanto são alienígenas naquele lugar – que ao leitor é o rascunho do próprio paraíso – e, pela sua natureza, não se sentem confortáveis. A grande crítica feita pelo autor – adepto da chamada “instintoterapia” – está no distanciamento do humano da sua própria natureza, algo explicitado na androginia inicial dos protagonistas.
O contraste do ambiente asséptico da estação espacial, onde tudo é controlado, prazeres inexistem e “Terra” é uma pré-história distante, com a utopia naturalista dos jardins é também o contraste entre Stel e Atan da estação e Stel e Atana dos jardins, pois, seguindo a cartilha do pecado inicial, ao provar da alimentação natural dos pomares de maçã e se distanciando do controle eugênico da humanidade espacial, sua verdadeira natureza aflora, manifestada no despertar de uma sexualidade reprimida por milênios de controle hormonal. A transformação drástica de Atan em Atana também é o início da exploração de Moebius em torno dos arquétipos instintivos (sexuais) humanos, que orbitam as nossas identidades de gênero e conduzem, especificamente o desenvolvimento e o propósito de cada personagem.
Propósito esse que será determinado pelo confronto de Stel, uma alegoria adônica, com outras alegorias bíblicas de Edena. Em particular o Mestre Burg, Deus. Burg é representado de forma coerente a refiguração onírica de Moebius do mito bíblico; tais quais os sonhos, Burg é apresentado de maneira amorfa e se faz parecer – quando necessário – com um humano, mas está muito além disso. Uma antropomorfia do transcendentalismo divino projetada em uma viagem de LSD. Ele se faz à imagem e semelhança de seu Adão, para que eles possam se identificar, subvertendo a relação de homem e deus, colocando este último em uma condição de delírio oriundo da dificuldade de Stel de compreender aquele lugar e a maneira como ele funciona – uma alegoria ao maravilhamento do homem diante da natureza da sua própria existência. Deus se torna uma válvula de escape para o aprisionamento de Stel neste pretenso paraíso, determinando propósito, mas não explicitando como cumpri-lo. Quem exerce essa tarefa são seus “anjos”, edelfos, criaturas feéricas que guiam Stel em alguns momentos da trama. Em sua língua, eles dizem “Ochandai Swanii Dol” – “Precisamos salvar ‘a deusa’”.
A Deusa é o título do terceiro volume. Nele, acompanhamos o afloramento da feminilidade de Atana, que abraça sua nova identidade e sofre com a distância de sua contraparte. É curioso notar que apenas pontualmente percebemos que a história se passa entre longos hiatos de tempo, pois, novamente, o tempo do sonho não é regular, estável, perceptível e, em última instância, relevante de qualquer forma. Nos sonhos, o que importa é o que vemos diante de nós e o que vemos é a perseguição de Atana pelos habitantes do Ninho, os comicamente chamados pif-pafs. A Deusa é um volume em que Moebius explora sua admiração e reverência pela figura feminina e sua crítica à opressão patriarcal. Como já estabelecemos até aqui, essa crítica não é muito sutil. Pelo contrário, valoriza o contraste de elementos arquetípicos. Pois se o pavimento de Edena pode ser considerado freudiano, por explorar a descoberta da identidade através do afloramento da sexualidade em um cenário onírico, a construção sobre ele pode ser considerada jungiana, pois trabalha metáforas através de uma linguagem de símbolos que se expandem a um contexto mítico, que lhes dá significado.
Esses pif-pafs são um povo de um único gênero, que possuem profunda ojeriza a qualquer exposição de partes do corpo, em particular do rosto. Este é permanentemente coberto por uma máscara, que possui um “nariz” extenso, em uma clara alusão ao falo masculino. Eles se alimentam ou tomam remédios por ele, ou seja, qualquer invasão externa ao microcosmo de um pif-paf só acontece através do símbolo fálico preso à sua cara. Não obstante, essa obsessão pela opressão a identidade individual também se manifesta no aspecto coletivo – quando são confrontados pela presença de uma “fora-do-ninho”, Atana, sua única reação é impor de forma atroz o “regulamento”, o qual que veneram de maneira religiosa. Esse regulamento, em linhas gerais, não é difícil: qualquer atitude que rompa com a homogeneidade da sociedade pif-paf é punida com severidade.
Ao ser capturada, Atana descobre que esse regulamento foi criado e disseminado pela Paterna, uma figura de características tão transcendentais e oníricas quanto Burg, mas que, ao se manifestar, escolhe um aspecto ofídio e abissal, vendo na figura de Atana o mais glorioso troféu a ser consumido. No final do volume, Atana, que, após morrer e ressuscitar torna-se uma figura libertadora, derrota a Paterna em uma batalha de símbolos arquetípicos. Atana, a mulher cujo corpo iluminado e despido liberta e redime, derrota a Paterna, que oculta, regulamenta, oprime. A vida se sobrepõe a não-vida.
Ao ser derrotada, a Paterna se volta contra o outro elo dessa corrente – Stel. No quarto volume, vemos as manifestações do vilão capturando e levando Stel para uma outra cidade, localizada embaixo de “lagos de fogo”, onde ele seria apresentado aos pif-paf e a sua relação devocional ao “regulamento”. Nosso herói será tentado pelo demônio no próprio inferno. que – como sempre – se apresenta na sua melhor forma: a do amigo íntimo, que oferece conforto e prazeres. No caso, um Trollopen possuído, que reaparece como mestre dos pif-paf e do ninho. Ele explica como chegaram ali, como rejeitaram as belezas orgânicas do jardim de Edena em detrimento da assepsia da sua sociedade futurista, como o ninho surgiu e nos dá a primeira medida precisa de tempo de toda a história. Trollopen, possuído pela Paterna, é o rompimento do ciclo do sonho e do mito. Seu grande ato de vilania é tentar trazer Stel de volta ao real, isolando-o eternamente de sua Atana, agora manifesta como uma divindade libertadora. Sua intenção é usar Stel como isca, para atrair Atana e desfazer a não-realidade onírica projetada por Burg sobre o mundo de Edena. Afinal, o que poderia ser mais cruel para alguém que sonha o mais belo sonho do que despertar?
Na conclusão da sua saga de sonhos míticos, Stel, capturado pela Paterna, sonha um sonho dentro de um sonho. Lá, ele encontra sua Atana, mas o plano da Paterna se revela: ao exterminar o sonho de Stel e Atana, Paterna destruiria o mito fundamental criado por Burg para Edena, destruindo a ele próprio, já que um é uma manifestação do outro. Assim, poderia criar sobre Edena um mundo de pif-pafs devidamente regulamentados. A grande intenção do demônio, afinal, não é destruir a criação divina, e sim, refazer o mundo a sua própria imagem. Mas o plano da Paterna falha. E a mensagem de Moebius não poderia ser transmitida de maneira mais singela e poética – nenhuma realidade, por mais fria e opressora que seja, pode suplantar a beleza mítica e divina de um sonho. Principalmente se for um sonho de amor. Parafraseando o Senhor dos Sonhos de Neil Gaiman, no inesquecível duelo contra o demônio Choronzon – “Eu sou a esperança”.
Após a derrota da Paterna, Burg concede a Stel um último alento: o despertar. De volta ao mundo “real”, descobrimos que Stelenkian, um mecânico espacial, havia sofrido de uma doença espacial, que nubla a distinção entre o real e o delírio – a síndrome de E.D.N.A. Antes de voltar à Terra, Stelenkian realiza um último conserto. Lá, ele reencontra, num momento onde a realidade e o sonho se cruzam novamente, sua amada Atana, que lhe explica que ela vive nele enquanto um sonho. O masculino é o feminino, e, independentemente de onde estejam e do que representam, eles só podem existir juntos e só podem realizar seu significado através do outro. Todo sonho é, em seus próprios termos, tão real quanto a própria realidade. É apenas uma questão de que, citando novamente o Sonho de Gaiman, “quando sonhamos, nós sempre nos lembramos. Quando acordamos é que esquecemos”.
O amigo leitor pode perguntar, “mas afinal, toda essa epopeia para cair no clichê ‘era apenas um sonho’”? Mas é justamente esse o ponto. Sonhos não são “apenas”. Eles moldam a nossa realidade da mesma forma que a realidade os molda. O consciente é indissociável do inconsciente, como o feminino é indissociável do masculino, como a individualidade define o coletivo. A existência humana de Moebius é complexa e sutil, encantadora e assustadora. É o apolíneo e o dionisíaco, manifestados em toda a diversidade mítica e pluralidade construída historicamente, de forma consciente ou não. Profunda. Inefável.
O sexto volume é apenas (cuidado, resenhista…) um epílogo com quatro histórias curtas. Nelas, temos uma conexão de Stel e Atana com o próprio Moebius, encerrando graciosamente o ciclo iniciado no prólogo de Na Estrela. Nas outras histórias, temos a primeira aparição dos pif-pafs, as primeiras viagens de Stel e Atan e até mesmo uma participação do Major Grubert, da outra obra clássica de Moebius, A Garagem Hermética. Aqui, por serem histórias curtas e dispersas no tempo, vemos diferentes estilos do autor, que variam nas suas características particulares entre um Moebius mais maduro (o último volume de Edena foi publicada em 2001) e o Moebius que remete aos tempos da clássica publicação francesa Metal Hurlant.
A experiência dessa obra magnífica é potencializada pelo tratamento dado pela Editora Nemo a ela. A escolha pelo formato 24x 32 cm, formato brochura de capa dura valoriza os belos quadros da obra. O talento de Moebius está nos detalhes e, principalmente em Edena, uma obra épica fundamentada em elementos míticos, onde o símbolo é tão importante quanto a narrativa, a possibilidade de explorar o talento do autor na sua totalidade tem que ser aplaudido. Além do fato, claro, de encerrar décadas de espera pela publicação das obras do autor no Brasil. O único porém fica por conta do preço. Custando uma média de 40 reais por volume, completar a hexalogia pode ser um esforço oneroso para o leitor.
Mas vale muito a pena. Uma obra como essa é essencial para qualquer um que se diga apreciador da nona arte. Em um mundo ideal, teríamos muito mais obras como Edena e menos tranqueiras encalhadas em bancas e comic shops por aí, permitindo aos quadrinhos evoluir ainda mais como arte.
Um dia, quem sabe? Afinal, não custa nada sonhar.