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O Melhor Que Podíamos Fazer – Sim, foi!

O Melhor que Podíamos Fazer sensibiliza ao nos colocar no lugar da própria Thi Bui

Em nenhuma guerra existe um “lado vencedor”. Existem indivíduos cujas agendas são reafirmadas às cujas de milhares de corpos, da dor, do sofrimento e das escaras, físicas e emocionais, dos sobreviventes. O historiador Paul Veyne diz, em A História da Vida Privada, que se se quer conhecer realmente a trajetória de uma civilização, não deveríamos nos debruçar sobre seus líderes, imperadores e generais; temos que observar o povo, o homem e a mulher comuns – aqueles sobre os quais esses pequenos indivíduos privilegiados acreditam se sobressair e, por isso, comandam abertamente para a morte. Em que pese que em O Melhor que Podíamos Fazer, a vietnamita Thi Bui construa uma história baseada em uma perspectiva particular, essa perspectiva está intimamente ligada a maneira como a guerra e as agendas políticas – essas abstrações que tanto sofrimento provocam no mundo real – interferem na continuidade da vida de não apenas um indivíduo, mas gerações inteiras.

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Lançada no ano passado pela Editora Nemo, a HQ segue uma longa tradição de graphic novels que usam o elemento visual característico da nona arte para potencializar a exposição dos sentimentos – desde cânones como Maus e Persépolis, até obras menos conhecidas como O Boxeador ou A Propriedade. E, sem receio de fazer comparações, O Melhor está à altura dessas obras. Porque conta com o mesmo elemento comum à todas essas outras obras: sinceridade. Mas não apenas a sinceridade no relato dos fatos; não uma objetividade fria. Thi Bui demonstra sinceridade em relação às suas memórias e às de seus pais. Embora a HQ evoque um contexto histórico específico, seu foco é uma breve e despretensiosa análise da condição humana em seus diversos níveis; algo que só é possível devido à vivência que ela possui de uma realidade que, para mim e para você, amigo leitor, é absolutamente alienígena.

Tendo nascido no Vietnã, no início da década de 70, Bui ainda pegou os anos finais da Guerra que se desenrolava ali desde 1959. Como toda vietnamita do período, se via presa em um conflito que tinha vieses ideológicos, mas – como em toda guerra – também objetivos mais nefastos. Não que isso importe em absoluto: vamos deixar claro, desde já, que O Melhor não se trata de um panfleto defendendo ou atacando qualquer tipo de agenda; ao contrário, mira justamente no que acontece quando pessoas têm qualquer possibilidade de decidir suas vidas extirpadas por forças que mal conseguem compreender. A trajetória de Bui não é a daqueles líderes que “venceram” ou “perderam”; é a história daqueles que ficaram pelo caminho.

As muitas faces do horror

Seus pais, mesmo na sua terra natal viveram vidas bem diferentes: seu pai e seu avô conheceram de perto os horrores do regime comunista. Sua relação com seu próprio pai e seu avô, dentro desse contexto social e histórico, influenciaram e afetaram profundamente sua personalidade, tornando-o um homem lacônico e distante. Sua mãe teve uma vida diametralmente oposta: estudou nas melhores escolas e tinha, para os padrões vietnamitas, um prognóstico abastado de futuro. Mas, assim como a realidade de seu pai era brutal e visceral, sua mãe logo descobriu que a sua também era uma frágil ilusão. Quando adultos, entendem com clareza que aquilo será uma terra arrasada durante muito tempo, e decidem ir para os Estados Unidos em busca de um futuro melhor.

O Melhor Que Podíamos Fazer

O problema é que, quando sua própria definição de existência é marcada a fogo pelas circunstâncias na sua memória, você pode deixar um lugar, mas o lugar não deixa você. Exatamente por isso, Bui cresceu entre dois mundos de outros dois mundos: o de seu pai e sua mãe, e o do Oriente e o do Ocidente. Mundos que não se dialogam – figurativa e literalmente. Bui cresceu sem referências; não porque elas não existissem, mas porque é difícil discernir o certo do errado, fato de memória, quando ninguém se atreve a falar sobre nada. Apenas já adulta, quando da ocasião do nascimento do seu filho – uma experiência bastante traumática – é que a autora começa a pesar a trajetória de sua própria em contraste com o pouco que sabe sobre os pais. E uma compreensão mais apropriada começa a surgir disso.

O melhor que ainda podemos fazer

Essa virtude trágica e, em última instância catártica, da vida de Bui rende muito escopo para reflexão. Mas até por uma questão de característica da narrativa, seria imprudência e arrogância afirmar ao leitor qual seria esse escopo – ele diz muito mais às nossas referências particulares do que a referências gerais. Ele nos leva a pensar sobre como nós mesmos reagiríamos sob esse tipo de circunstâncias; em que parte do espectro de sofrimento de seus pais nós mesmos nos encontraríamos se passassemos pelo que eles passaram. O que não deixa de ser absolutamente apropriado – afinal, retomando a colocação no início do texto, quando falamos em guerra e conflitos, nós nos reduzimos a pensar nos vencedores e perdedores. Raramente pensamos que praticamente nenhum de nós estaria entre o punhado privilegiado que passaria por tal processo incólume; raramente pensamos em quem e no que perderíamos pelo caminho. O fato é que a vida de Bui é definida pelo que e por quem seus pais perderam; uma trágica e contundente lembrança de que a guerra afeta, como dito também no início do texto, gerações por vir.

O Melhor Que Podíamos Fazer

A HQ em si é magnífica. O traço pesado e hachurado da autora contrasta com a colorização, que usa tons pastéis de ciano e magenta – principalmente o último, dando às suas memórias intensidade ao mesmo tempo em que imprimem um caráter etéreo, como se facilitando nossa imersão em suas memórias. Inúmeros de seus quadros são abertos, e Bui utiliza livremente o enquadramento de bordas para criar certos efeitos oníricos, reforçando a ideia de que muita coisa ali parte da sua percepção particular das circunstâncias e da sua própria história – o que, ao contrário do que se poderia pensar, só aumenta ainda mais o efeito dramático da narrativa sobre o leitor. É muito – muito – difícil não criar algum tipo de empatia pela autora e pelas suas famílias. É uma história sem heróis ou vilões – ou, talvez, com vilões cujas raízes estão tão distantes de seus espinhos que muitos ignorantes irão afirmar de boca cheia que sequer são a mesma coisa.

O título da obra, ao término da leitura, deixa de ter um certo tom de resignação natural à afirmação e passa a ter contornos heróicos – o que os pais de Bui fizeram por si e pela família foi literalmente o melhor que eles podiam fazer dadas as circunstâncias. Heróis de certa forma trágicos, sim, mas só o fato de terem sobrevivido fisicamente à guerra e de continuarem sobrevivendo à uma realidade completamente alheia à sua, como é a do Ocidente, os torna mais fortes do que nós mesmos temos de nos questionar se seríamos, se passassemos pelo mesmo. E, no fundo, é só isso que a autora nos pede: leiam a sua história, compreendam o nexo causal entre as coisas ali, e reflitam para construir um mundo onde ninguém mais tenha que passar por algo parecido.

É o melhor que podemos fazer.

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