O que é arte? O que define um artista? Desde a Poética de Aristóteles até as recentes correntes da filosofia hermenêutica, essas questões perturbam os filósofos, assim como os artistas. Na verdade, qualquer pessoa que em algum momento tenha flertado mais de perto com a arte já se pôs essas questões. Na minha agora distante adolescência, antes de iniciar minha jornada nos estudos filosóficos, eu não apenas flertava com a arte – estava profundamente apaixonado por ela.
Particularmente, a música, a única coisa capaz de dragar minha atenção dos meus sempre queridos quadrinhos. Assim, inspirado pelos meus grandes ídolos das quatro cordas, me aventurei a estudar o baixo. Mas a vida, fenômeno natural que é, não possui nenhum tipo de moralidade. Ela simplesmente acontece. Ela simplesmente é. E o que a vida rapidamente me ensinou é que, independentemente das nossas intenções ou sentimentos, nem sempre conseguimos o que queremos.
Por mais que eu me esforçasse – e foram anos de bolhas nos dedos e pulsos doloridos pela prática – eu nunca consegui me tornar um grande músico. Felizmente, ainda era aquela fase da vida em que todas as portas estavam abertas, e o meu amor não-correspondido, fadado ao eterno platonismo, pela música não significava o fim do mundo. Eu e arte continuamos de mãos dadas, mesmo que apenas como amigos. Porque eu entendi de forma relutante, mas resignada, que nós não escolhemos a arte – ela nos escolhe.
O mesmo não se pode dizer de David Smith, protagonista da obra de Scott McCloud, O Escultor (The Sculptor), publicada aqui em 2015 pela Jupati Books. Smith, no auge da sua juventude, foi ladeado por um generoso mecenas, que via no jovem escultor um imenso potencial para se tornar um dos grandes nomes do futuro dessa arte. Entretanto, o tempo passou e a vida de David não se tornou nada mais do que um acúmulo de frustrações, decepções e mediocridade. Sua família morreu e sua escultura nunca o levou a lugar nenhum. David ama sua arte, mas sua arte não o ama. Pior do que isso, David é um homônimo de outro escultor, e esse abundava habilidade. De forma cruel e objetiva, a vida, por inúmeras circunstâncias, faz questão de lembrá-lo disso a todo instante – David simplesmente não tem o talento que desejava ter.
Eis que entra em cena seu tio-avô, Harry. Harry é muito querido por David. Entre os principais motivos, o fato de que ele sempre foi um dos poucos a acreditar no talento de David desde a sua infância. Ao reaparecer, ele relembra David de toda a esperança que este possuía quando criança, e todo o deslumbramento que a arte lhe provocava. Entretanto, a presença de Harry nesse momento tão melancólico da vida de David não lhe traz nenhum alívio, por um motivo muito simples – Harry está morto.
Quando esse fato lhe é posto a frente, Harry revela o óbvio – não se trata de Harry, mas aquela que o levou. O aspecto simpático assumido pela Morte tem apenas um objetivo: atrair a atenção de David e lhe oferecer um acordo. Um pacto, se o amigo leitor assim preferir. E neste momento, entramos no ciclo faustiano de O Escultor – a Morte concederá a David toda a habilidade que ele sempre desejou, em troca de sua vida. A partir do momento do acordo, David teria apenas 200 dias de vida para desfrutar dessa habilidade, e depois partir.
Mas ao contrário do poema de Goethe, David não é objeto de uma disputa maior entre forças cósmicas, como Fausto era entre Deus e Mefistófeles. Ao contrário, a Morte, que na alegoria de McCloud ocuparia o lugar do demônio, é um personagem afável, que oferece a David aconselhamento e até mesmo uma agradável companhia até o fim dos seus dias. A única grande disputa, o único grande dilema posto pelo autor ao seu protagonista, é interno. A partir do momento em que o relógio começa a andar para David, poderíamos incorrer no erro de acreditar que a grande motivação do personagem seria correr contra o tempo para criar a maior quantidade de obras possíveis e marcar seu nome na história da arte.
Mas McCloud, ardilosamente, não está disposto a oferecer saídas simples para o seu personagem, e evoca as questões que eu pus ao leitor no início da resenha – o que é arte? O que define um artista? Posto dentro do contexto de O Escultor, o que McCloud nos questiona é: de que ainda vale toda a habilidade e talento do mundo, se você não sabe o que fazer com eles? O autor está disposto a torturar seu protagonista para nos fazer ir atrás das respostas. Pobre David.
David, tendo toda a habilidade do mundo, é incapaz de fazer algo que chame a atenção das pessoas. E esse paradoxo é tão cruel quanto comum no nosso mundo. Apesar do elemento alegórico fantástico dado ao autor para o seu personagem, David é um ser humano brutalmente crível. Basta o amigo leitor pensar em quantas pessoas conhece que possuem habilidades incríveis, mas que, pela incapacidade – seja ela qual for – de demonstrá-las ao mundo, estão condenadas a morrer no anonimato. Aquele seu primo que pinta quadros belíssimos, aquele seu colega de trabalho que é um fenomenal guitarrista, aquele moleque pentelho da vizinhança que joga bola como ninguém. Ninguém nunca saberá deles, porque eles têm o talento, mas estão ocupados pagando contas, saindo com a namorada ou ouvindo dos seus professores na escola que eles não têm chance. Todos eles são David.
Devido a isso, existe uma certa noção de temporalidade dentro de O Escultor que potencializa o seu brilhantismo. Com o prazo determinado para sua morte, a narrativa poderia facilmente se orientar pela noção que David tem do escoamento dos seus dias, provocando a todo instante uma sensação de urgência. McCloud, no entanto, habilidosamente nos conduz não através de uma temporalidade objetiva, contando o passar dos dias, mas através de uma “intratemporalidade”, a percepção da passagem do tempo do ponto de vista de David, orientada pela maneira como David se sente e observa o mundo.
Muito semelhante em alguns aspectos a percepção da passagem do tempo de Hans Castorp, protagonista de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, onde o leitor é sutilmente trazido à temporalidade interna do livro, orientado pela maneira como Castorp percebe a passagem do tempo sobre a montanha. No clássico de Mann, entretanto, o tempo parece passar mais devagar conforme Castorp permanece ali – na verdade, isso se manifesta até mesmo de maneira física no livro, em que o sétimo e último capítulo é colossalmente maior do que o primeiro. Embora os capítulos de O Escultor não sejam divididos dessa mesma forma, é fácil para o amigo leitor perceber essa distinção temporal, visto que a grande maioria da obra é dedicada as primeiras semanas do prazo de David, enquanto alguns dos meses finais são compilados em apenas algumas páginas. E o motivo para isso tem nome: Meg.
McCloud, em um momento de pura inspiração, nos apresenta o interesse romântico de David da maneira mais lírica possível. Em um dos primeiros momentos de real desespero dele na obra, as pessoas à sua volta se curvam a ele, e Meg desce dos céus na forma de um anjo e, após um tenro beijo, lhe diz que tudo vai ficar bem. A cena é de uma beleza única e – por um breve momento -oferece não apenas a David, mas ao próprio leitor, um momento de alento. Existe outra comparação interessante a se fazer aqui em relação ao clássico de Goethe – a alma de Fausto será levada somente quando Mefistófeles criar uma situação de felicidade tão plena que faça com que ele deseje que aquele momento dure para sempre. Desnecessário dizer o quanto esse momento irá marcar David pelo resto de sua breve vida.
Mas Meg acaba revelando, obviamente, não ser um anjo. Ao menos, não no aspecto literal. Pois David descobre nela o sentido do amor e da vida – enfim, de salvação – que ele ainda não havia descoberto antes de seu pacto com a Morte. Cruelmente romântico. E ela representa justamente o rompimento com ciclo descendente do protagonista até aqui – é ela quem dá sentido e objetivo para David usar os seus recém-adquiridos talentos. Tal qual Fausto, Meg, o interesse romântico, é a ponte entre o primeiro e o segundo ato de O Escultor. Incidentalmente, uma breve curiosidade, que pode ser coincidência ou não, e que pode sustentar essa tese de comparação com a obra de Goethe – o nome do interesse romântico de Goethe é nada menos do que Margaret, nome do qual “Meg” é uma contração.
Para fugirmos um pouco desta constante comparação ao poema trágico alemão, também podemos observar que esse não é o único fio narrativo de O Escultor. A presença de Meg faz com que David reencontre um sentido para viver que não unicamente a sua arte – embora usar seu talento de forma significativa ainda seja um objetivo principal. Porque Meg não é uma personagem bidimensional – ao contrário, como todos os outros personagens da obra, ela é profundamente complexa.
Suas características particulares são sutilmente construídas por McCloud para fornecerem os plot-twists, as tais viradas necessárias que fazem o protagonista seguir em frente, sem simplesmente permanecer parado esperando seu prazo se esgotar. Assim, David, após fazer seu pacto com a Morte e se sentir confortável em simplesmente esperá-la diante do fracasso no uso de seus poderes, decide lutar por algo que valha a pena – seu frágil e peculiar recém-descoberto amor.
Nos parece que a partir do momento em que David firma esse pacto, ele de fato só permanece vivo para buscar construir e, de certa forma, celebrar uma lembrança mais cálida de si mesmo. Exatamente por isso, dessa forma, a obra parece se passar durante as fases do luto – negação, raiva, barganha, depressão e aceitação – que o personagem sente em relação aos seus próprios últimos dias. De fato, toda a constituição de O Escultor é sutilmente criada para fazer com que o leitor oscile entre o contemplativo, o reflexivo e o melancólico.
Essa construção é profundamente marcada pela paleta de cores e pelo uso pragmático, mas ao mesmo tempo criativo, da diagramação dos quadros feitas pelo autor. Não obstante, a maneira como os “poderes” de David funcionam são usados de maneira perfeitamente alegórica, em muitos momentos, para representar aquilo que não pode ser explícito apenas em palavras – uma ideia representada, de maneira comovente e bela, no encerramento da obra.
Uma leitura rasa poderia nos fazer relacionar o fato de McCloud ser um especialista em quadrinhos à ideia de que em O Escultor ele estaria criando uma espécie de “super-herói” seu, visto que esse é o gênero criado nos e para os quadrinhos. Mas essa é uma interpretação mesquinha e superficial, que não dá conta da totalidade da compreensão do autor sobre história em quadrinhos que ele apresenta aqui. A página em branco de uma história em quadrinhos é um espaço metafísico e metalinguístico, onde as palavras constroem imagens e as imagens expressam palavras. Ele entende isso com clareza e seu trabalho deve ser lido com cuidado, para que todas as suas camadas possam ser observadas e apreciadas.
Isso se revela principalmente na presença de um dos protagonistas da trama – a cidade de Nova York. Nada é desperdiçado na mise en scène de McCloud, sua construção minuciosa do espaço cênico. Como dissemos anteriormente, a paleta de cores, a diagramação e o posicionamento do ponto de vista dos quadros são usados sutilmente para criar um cenário que é o próprio objetivo da vida e da arte de David – posteriormente na obra, algo levado a sério no sentido literal da coisa.
A cidade se apresenta, tal qual os outros protagonistas, como um personagem multi-facetado. Ela pode ser cruel e lúgubre, mas pode ser iluminada e acolhedora. Tudo depende do momento de cada um, e como eles interagem entre si. Da mesma forma, a diagramação não é ousada e complexa, como veríamos em outros grandes autores como Eisner ou Gaiman. Ao contrário, McCloud opta por uma apresentação econômica, apenas pontualmente usando a extrapolação visual permitida pelos quadrinhos. Isso tem um motivo claro – nosso foco é e sempre será David, até literalmente o último dos seus dias. O uso inteligente da diagramação pelo autor é também uma ferramente para percebermos o que é realmente importante.
A cidade serve como uma moldura – minimalista, mas que chama a atenção – para o que está acontecendo dentro de si. Talvez até por isso a escolha de McCloud pelas cores que permeiam a obra. O próprio autor alegou em entrevistas que o uso de três cores – branco, preto e azul-cobalto – foi devido à dificuldade de trabalhar com um colorista, mas é impossível não associar a precisão do uso delas aos humores dos personagens e, como dissemos, da cidade. Particularmente, a transição nos tons de azul sobre o branco e preto é digna de contemplação – ela dita com clareza sutil os humores internos da obra, mas nunca nos deixa escapar a melancolia perene que paira sobre David e sua percepção sobre a vida, o amor e a arte.
No final das contas, e aí retornamos ao próprio princípio da obra, podemos dizer que McCloud nos apresenta, apesar do tom melancólico da obra como um todo, uma visão relativamente esperançosa do que ele entende por esses tópicos. O uso cuidadoso do fantástico pelo autor mantém o nosso foco naquilo que realmente importa: problemas humanos, demasiado humanos, como a depressão, intenções frustradas pela vida ou o florescimento de um amor. O Escultor trata menos sobre os maravilhosos poderes de um homem capaz de derreter um muro com apenas um toque e mais sobre os muros intransponíveis que erguemos ao redor de nós mesmos – e o que acontece quando eles inevitavelmente caem.
Alguns desenhos específicos – como a calçada transformada em um calendário que termina em um abismo, um corpo em queda livre congelado metros acima do chão, ou mesmo a obra final de David – são maravilhosamente comoventes, tornando esta HQ uma obra grande o bastante para contemplar diversos tipos de questões nevrálgicas da existência humana. Algumas delas, como as que propusemos no início da resenha. Assim, podemos nos permitir arriscar respondê-las.
O que define a arte, o que define um artista, segundo O Escultor de Scott McCloud, é a crença, a esperança de que nós viemos a esse mundo para realizar algo a mais do que simplesmente esperar para morrer. A arte se define por si mesma, porque, tal qual o artista, tal qual nós mesmos, ela simplesmente é, e cabe a nós tornar-nos e torná-la algo belo.
Algo digno de mais do que querer dar a vida – algo digno de se querer viver por.