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O Boxeador – É isto um homem?

O Boxeador

Existe uma diferença abissal entre saber e entender. Paul Veyne, historiador contemporâneo, diz que, para que possamos entender determinados momentos da história, não basta nos voltarmos aos impérios, líderes e grandes eventos. É preciso buscar o povo, pessoas comuns, anônimos. Aqueles pegos no fogo cruzado, que se tornam números dispersos nas páginas dos livros. Que sofreram e morreram sem participar de grandes feitos, sem saber nem entender o porquê. Qualquer um sabe o que foi a Segunda Guerra. Mas somente homens como Hertzko Haft entendiam o que ela realmente significou.

Reinhard Kleist

Reinhard Kleist

Na HQ O Boxeador (Der Boxer), trazida ao Brasil pela Editora 8INVERSO em 2013, o autor Reinhard Kleist, conhecido pelos seus trabalhos biográficos com Johnny Cash e Fidel Castro, nos demonstra, de maneira visceral, que ainda não vimos tudo o que podíamos sobre o assunto e que não entendemos realmente o quanto muitas pessoas sofreram nesse período. Até porque, pessoas como o próprio Hertzko Haft, protagonista da história, levaram quase toda a vida para revelar sua verdadeira história. Quando a lemos, entendemos seus motivos. Ninguém em sã consciência gostaria de lembrar de tudo pelo qual ele passou. Próximo do fim da vida, contou a seu filho, Alan Haft, e este, comovido com a difícil trajetória do pai que até então ele não compreendia, transformou o relato em um livro, Um dia eu contarei tudo – A história de sobrevivência do boxeador judeu Hertzko Haft, que Kleist adaptou para os quadrinhos. No caso de Haft, é preciso entender a história para entender o homem.

O verdadeiro Hertzko após a guerra!

O verdadeiro Hertzko após a guerra!

A história se divide em três atos. A primeira parte começa com a história de Haft na sua juventude em Belchatow, na Polônia. Uma vida de pouco talento para estudos e pequenas trapaças para ajudar a sustentar a família pobre, além de um amor por uma jovem chamada Leah que permaneceria “puro”, dadas as circunstâncias que ele viria a enfrentar. É curioso notar que o protagonista não é exatamente “material de herói”. Seu jeito teimoso e muitas vezes agressivo, tanto na juventude quanto na vida adulta, o tornam até mesmo uma pessoa desagradável, difícil de se lidar. O próprio Alan Haft, filho de Hertzko, pensava isso sobre o pai, como fica claro nas primeiras páginas da HQ. Mas, novamente, este é um caso em que é preciso observar a história para entender o homem.

Uma vida pueril, poderia dizer-se, não fosse a crescente sombra do nazismo sobre seu país. O fato de Haft ser judeu, assim como um enorme número de poloneses, agrava muito toda a situação. Tão precária era a condição de seu povo, que bastou um erro de Haft para que ele fosse mandado para o inferno na Terra, sem exagero. Ele passou pelos piores (não que houvesse algum bom) campos de concentração que existiram: Poznan, Strzelin, até chegar ao lugar que redefiniu o conceito de “crueldade” para toda a raça humana, Auschwitz. Aliás, essa redefinição é mostrada pelos desenhos de Kleist com uma agudeza que chega a ser incômoda.

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A arte da HQ transmite com perfeição a transição de uma vida banal para um sofrimento desproporcional. No início da história, Kleist desenha com leveza, lembrando em muitos momentos o traço de Eisner, uma de suas inspirações declaradas, usando tons de nanquim bem dispersos pelas páginas, principalmente nos cenários campestres, para demonstrar uma certa inocência. Inocência essa também refletida nas expressões leves e mais vívidas dos personagens, com traços mais limpos e bem definidos. Esses traços acompanham o agravamento da situação de Haft, física e moralmente.

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Os trabalhos forçados que os judeus tinham que realizar e as torturas que sofriam são bem conhecidas, mas é impressionante a maneira como o autor mostra as coisas se deteriorarem ao ponto de não restar mais nada naquelas cascas humanas vazias perambulando pelos campos. Os alemães não extirparam dos judeus apenas sua liberdade, mas também arrancaram brutalmente suas identidades e, por que não dizer, suas almas. Para eles, os judeus não eram apenas uma espécie inferior, pois isso seria trata-los como animais, eram menos do que isso. Menos até mesmo do que objetos. Eram ferramentas de pouco valor, prontas a serem descartadas. Alguns momentos ajudam o leitor a entender visceralmente essa filosofia da morte. Em particular, os fornos humanos, os assassinatos brutais e o canibalismo. Sim, canibalismo! Se o amigo leitor não ficar, ao menos, ligeiramente perturbado com essas cenas, procure um psicólogo. A arte acompanha os momentos de horror. O traço se torna pesado, confuso, a escuridão toma conta dos cenários e as expressões dos personagens se tornam pesadas, mas ao mesmo tempo vazias, como mortos-vivos.

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Por que alguém escolheria viver neste cenário apocalíptico? Basicamente, porque lhe foi dada a oportunidade para isso. Durante esse pesadelo, Haft se aproxima de Schneider, um oficial alemão que lhe oferece uma chance: se ele lutasse boxe com outros prisioneiros para o divertimento de oficiais da SS, ele receberia pequenos privilégios que lhe permitiriam sobreviver àquele período. Curioso é também observar Schneider, um oficial alemão que não compartilha por completo da ideologia nazista. Ele se encontra naquele limbo tão criticado por Hannah Arendt de nazistas que estavam apenas “fazendo o seu trabalho”.

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Imbatível, Haft despejava toda sua vontade de viver nesses combates, pois sabia das consequências. Nascia ali a “Fera Judia”. Seu trófeu por cada vitória? A vida. Desnecessário dizer o destino daqueles que foram derrotados por ele nesses ringues. É curioso perceber que, apesar de ser o título da HQ, o fato de Haft ser um boxeador chega a ser quase apenas um detalhe da desgraça pela qual ele passou. Uma habilidade mais importante pela esperteza com que ele a usava – para garantir sua sobrevivência – do que pelo talento puro. É impossível aqui não fazer um paralelo com o clássico É Isto Um Homem?, de Primo Levi, onde o autor, em determinado momento, relata que muitos judeus esqueceram que eram humanos dentro desses campos. Apenas aqueles que agiam com astúcia e paciência tinham alguma chance de sobreviver.

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Então, temos o segundo ato. Haft sobrevive, obviamente. Resgatado pelos ianques ao término da guerra, se dirige para a América com três objetivos: recomeçar sua vida, esquecer o pesadelo dos campos e reencontrar sua amada Leah. Para seu reinício, Haft decide, após encontrar dificuldade em se estabelecer em um emprego, investir em seu talento de boxeador. Com a exposição na mídia, se ele não pudesse achar Leah, ela o acharia. O resultado dessa decisão é elusivo. Assumindo agora nomes americanos, Harry “Herschel” Haft, tem um brilhante início de carreira com dez vitórias em dez lutas. Porém, algumas derrotas consecutivas colocam em dúvida sua habilidade. No mundo do esporte, só a vontade de vencer não basta. Surge uma última oportunidade, que poderia alavancar de vez a carreira de Haft ou ao menos dar a ela um fim digno: enfrentar ninguém menos do que Rocky Marciano, lendário boxeador peso-pesado, jamais derrotado.

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A luta com Marciano é o ponto alto dos desenhos de Kleist. Dinamismo, precisão e intensidade marcam esse grande combate. Mas infelizmente, já estava decidido antes de começar e a partir daí a história do boxeador se encerra com uma saída pela porta dos fundos do esporte, dando lugar ao que restou do homem, no terceiro e último ato. O que sobrou deste indivíduo casa-se e inicia uma família, tendo entre os filhos Alan, o biógrafo desta história. A tensa relação entre Haft e os filhos é melhor compreendida a partir do momento em que já temos em mente tudo o que ele passou. Alan veria o pai tentar atar as últimas pontas soltas de sua vida, sem sucesso, principalmente aquelas relacionadas a Leah, antes que pudesse lhe contar toda a história.

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O Boxeador é uma história. Não é “apenas” uma história, nem é uma história de glórias. Na vida real, é muito difícil haver heróis e vilões, e Hertzko Haft não é um herói. Um dos grandes méritos de Alan Haft e da adaptação de Kleist é que eles não tentam nos impor essa visão catártica de um homem nobre que sobreviveu a todas as provações para prosperar. Hertzko Haft é apenas uma pessoa, como eu ou você. Cheia de qualidades, mas de falhas, algumas desprezíveis. Ele é um ser humano que foi despido brutalmente de sua humanidade e largado a própria sorte para tentar recuperá-la da maneira que pudesse. Vislumbrou um breve momento de glória no Olimpo do seu esporte, mas tão logo passou esse instante, a realidade o devolveu ao chão de uma maneira cruel. Entretanto, como muitas coisas na vida são uma questão de referência, o que é crueldade para alguém que sobreviveu ao que ele sobreviveu, fazendo o que ele teve que fazer?

Parafraseando novamente o título de Primo Levi:

Afinal, é isto um homem?

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