Nijigahara Holograph procura mostrar um recorte do nexo causal que une os diversos tempos e lugares de nossas vidas
“Kicking around on a piece of ground in your home town/Waiting for someone or something to show you the way”. A lendária canção do Pink Floyd, Time, nos lembra que, para cada instante em que percebemos a nossa existência neste mundo, existem anos e mais anos de absoluta auto-negligência. Por isso, muitas vezes, é difícil ter absoluta noção do nexo causal que que faz com que sejamos quem nós somos; até porque, tal qual um fractal, as nossas ações se desdobram e consequências para outras pessoas, assim como as ações dessas, se tornam consequências para nós. E é perscrutando os recortes de clímax de um fractal que Inio Asano compõe uma das melhores obras dos quadrinhos das últimas décadas: Nijigahara Holograph.
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Eu imagino que a analogia mais próxima que muitos amigos leitores farão sobre a proposta temática do mangá seria a de “efeito borboleta”. O que não é absolutamente fora da realidade; é só uma questão de que um efeito borboleta é um evento sequencial, linear, dentro do desdobramento de uma ou mais determinadas linhas temporais. Não é exatamente o que acontece aqui. Como dito no primeiro parágrafo, a imagem que estamos procurando é algo mais próximo de um fractal temporal: uma ideia de tempo que se desdobra e se repete de forma geometricamente perfeita – ou seja, concomitante em todos os sentidos.
Para Asano, o padrão fractal da existência humana é, essencialmente, moral. Em Nijigahara Holograph, ele nos apresenta inúmeras histórias de miséria e sofrimento, mas que são pontuadas por valores como o perdão, a aceitação e a compreensão. A ideia de que, tal qual um fractal, tudo que se expande em uma direção, também se expande em outra diametralmente oposta. Assim, o autor uma obra não-linear de contornos surrealistas, onde o tempo dos seus eventos – assim como suas consequências – ocorre simultaneamente, em uma realidade onde os símbolos e seus significados são mais relevantes do que os protagonistas em si.
Mas, ainda seguindo com essa analogia da forma geométrica, tal qual uma fractal, é necessário um nexo causal que una todo o recorte feito pelo autor. Esse seria, precisamente, o local que dá nome ao título – “nijigahara” traduz-se como algo do tipo “campo de arco-íris”. O “holograph” que se segue – “holograma”, em português, deixa bastante clara a intenção do autor: focar-se em apenas um dos aspectos dos eventos ocorridos – e/ou desencadeados – por esse campo, resultará apenas em uma ilusão; um fragmento distante da verdade do todo.
Akie é uma jovem em coma. Seus colegas de sala tentaram matá-la jogando-a em um buraco. Suzuki é um garoto perdido, que em dado momento se atira da janela da escola. Maki é uma garota atormentada por ter colaborado com a tragédia de Akie. Kyoko é uma professora desfigurada, agredida após flagrar o estupro de uma aluna. Todos esses momentos, aparentemente dispersos, na verdade se conectam em muitos níveis de um mesmo nexo – conceitual, sobre as questões morais; físico, por serem desencadeados por e no mesmo local; e temporal, já que existe uma causalidade direta entre esses eventos.
Partes de um todo
A escolha do autor de apresentar a narrativa de forma não-linear respeita a sua própria proposição conceitual – ele está tentando nos apresentar a quarta dimensão da sua temporalidade, onde nós podemos significar e resignificar os eventos ali mostrados, dependendo da maneira como interpelamos e interpretamos a obra. Nijigahara Holograph é um grande quebra-cabeças. Cada página conecta uma peça, e o que parecia – a princípio- um conto surreal se mostra um retrato complicado, objetivo e tocante da condição moral humana. É uma espécie de versão mais cruel do Jogo da Amarelinha de Cortázar, uma revisão contemporânea da narrativa do Sétimo Selo de Bergman, ou uma visão de como seria se todas as mortes do Brás de Oliva Domingos, de Daytripper, ocorressem simultaneamente.
Esta resenha é até injusta com a obra. Ela oferece muito mais camadas do que esse breve texto é capaz de contemplar; temas como o peso que a influência social exerce sobre os jovens, a perspectiva existencialista, qasi-niilista, de muitos personagens, ou a violência contra as mulheres – este, tema recorrente nas obras de Asano – mereceriam uma análise por si próprios. Mas, tal qual a proposta da obra, é preciso achar um nexo – entender que, visto que somos incapazes de lidar com a totalidade da existência humana, podemos, ao menos, buscar um ponto onde possa haver equilíbrio. Talvez, até por isso, uma das poucas referências claras e acadêmicas que temos no mangá seja a de Zhuangzi, um pensador taoísta chinês:
“Zhuangzi adormeceu um dia em um jardim de flores, e teve um sonho. Ele sonhou que era uma linda borboleta. A borboleta voou aqui e ali até o cansaço, então ele caiu no sono, por sua vez. A borboleta teve um sonho também. Ele sonhou que era Zhuangzi. Neste ponto, Zhuangzi acordou. Ele não sabia se ele era agora o real ou o sonho do Zhuangzi Zhuangzi da borboleta. Ele também não sabia se era ele que tinha sonhado a borboleta ou uma borboleta tinha sonhado com ele.”
Embora isso fosse ser bastante reducionista, também não é absolutamente exagerado dizer que Nijigahara Holograph seja uma obra taoísta; em seu aspecto moral, apresenta a busca pela sabedoria; a vida regida por dois elementos dualistas, do yin (feminino), e o yang (masculino), em todas as implicaçõe que isso possa ter. Estas duas forças se complementam, e não pode existir uma sem a outra. E tal qual vemos em Nijigahara, os desejos ocultos e as boas intenções habitam o interior humano, em uma luta contínua onde, em determinados momentos, um ou outro se sobressai, desencadeando o fractal. A vida, segundo Asano, nada mais é do as ondas provocadas pela pedra jogada sobre a serene água do lago.
Curiosamente, uma das críticas recorrentes ao volume se deve ao fato de um encerramento insatisfatório. Uma observação que considero injusta por dois motivos: primeiro, trata-se de um fractal. Portanto, ele pode ter um nexo de princípio comum, mas não necessariamente um fim. Impor a necessidade de um encerramento clássico, comum, seria impor exatamente a mesma linearidade temporal que a obra questiona; segundo, trata-se de um fractal. O que significa que, independente de onde a obra tenha começado, ela necessariamente terminaria em uma direção diametralmente oposta. Ergo, a apresentação melancólica e cruel da natureza humana fatalmente teria que ser contrastada com um encerramente de natureza mais catártica.
Holografia é uma técnica de registro de padrões de interferência de luz que podem gerar ou apresentar uma imagem em três dimensões. Nós somos seres tridimensionais – física, temporal, moral e psiquicamente. O que significa que quem você é, de certa forma, quem você foi e quem um dia você será. Mas também significa que você já deixou de ser quem é, que está mudando a cada instante nesse exato momento, e cujo devir é absolutamente imperscrutável, pois os padrões de interferência do ser-aí, para usar uma expressão heideggeriana, resignificam a todo instante tudo o que um dia fomos e tudo o que viremos a ser.
Portanto, cabe a todos nós – do presente, do passado e do futuro – determinarmos quem somos nós.