A compilação Morcegos-Cérebro apresenta aqueles quadrinhos sci-fi que fazem a gente se lembrar porque gostamos de quadrinhos sci-fi
A gente gosta de coisa boa. A gente gosta de coisa ruim. As coisas ruins que são boas, então, são as nossas favoritas. É um fato bastante conhecido que a ficção científica produziu algumas das obras mais intelectualmente sofisticadas já escritas – mas também foi escopo de muita podreira. Nos quadrinhos, essa relação, principalmente na Era de Ouro, conforme explicamos no nosso podcast sobre quadrinhos da era atômica, era bastante idiossincrática. Pois os roteiros estavam mais relacionados a ficção científica boba e extrapolada da literatura pulp do que de um Julio Verne ou H.G. Wells. Entretanto, a arte trazia colossos que definiriam e/ou revolucionariam a nona arte. E se você quer ver de perto essa deliciosa esquizofrenia artística, a dica é Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias, lançado pela Editora Mino em 2017.
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A edição é exclusivamente brasileira – fruto de um trabalho pesado e dedicado dos editores Carlos Junqueira e Lauro Larsen. E põe pesado nisso. Porque todas as HQ’s inseridas no volume – 31 no total – são oriundas de uma época em que as coisas funcionavam de um jeito bastante diferente: primeiro, todas as histórias eram vendidas para as editoras que as publicavam. Portanto, em sua imensa maioria, elas não pertenciam de fato aos seus autores, mas ficavam no catálogo da empresa, que pagava uma miséria para os autores – e que também, pelo mesmo motivo, raramente eram creditados. Isso pode ser observado até mesmo nesse volume da Mino, e não se trata de preguiça ou mau-caratismo dos editores; muitos desses nomes simplesmente se perderam na história, salvo os casos em que, por exemplo, o desenhista também era o roteirista.
Tal atitude diante dessa propriedade intelectual revela um segundo aspecto problemático: essas histórias eram puro entretenimento e, em sua maioria, descartáveis. Havia pouco ou nenhum interesse por parte das editoras – e mesmo de muitos autores – de preservar esse material, o que faz com que muitos dos originais tenham simplesmente sumido. O amigo leitor precisa entender que, nessa época, os quadrinhos ainda estavam anos-luz do reconhecimento que possuem hoje (e que ainda nem é tanto assim). E não ajuda em nada o fato de praticamente todas as editoras que publicavam esse tipo de material terem falido, sido adquiridas por outras corporações ou simplesmente mudado o seu foco. Essa negligência histórica é apontada pelos próprios editores do volume, que explicam, nos seus prefácios, que tiveram que investigar e filtrar mais de 30 mil histórias – praticamente todas escaneadas ou em condições precárias de preservação – para selecionar as 31 que estão em Morcegos-Cérebro; e mesmo essas precisaram passar por um minucioso processo de restauração.
O lado bom disso tudo é que todas as histórias possíveis e imagináveis estavam a disposição justamente porque, devido a um sem-número de questões – algumas que observamos acima – essas HQ’s todas são de domínio público, então coube aos editores apenas escolher quais HQ’s e de que autores eles desejavam inserir no volume. E meus amigos, que time eles escolheram. Entre alguns colossos conhecidos da galera em geral – como Jack Kirby, Joe Simon e Steve Ditko – passando por alguns dos favoritos dos fãs de quadrinhos old school – como Alex Toth e Wally Wood – até nomes hoje relativamente esquecidos, mas enormemente talentosos – como Vince Fedora e Walter Kremer – os nomes aqui incluídos são algo muito próximo de um dream team de qualquer fã babão – como eu – de quadrinhos de ficção científica – e, porque não, dos quadrinhos como arte. A própria HQ que dá nome ao título, Os Morcegos-Cérebro de Vênus, é obra de ninguém menos que Basil Wolverton, o gênio que ganharia o mundo na revista Mad.
Escolhas difíceis
É até difícil lembrar qual deles é o seu favorito no meio de tanto talento. Nesse sentido, é necessário observar uma decisão bastante polêmica, mas também subjetiva: os editores optaram por restaurar o material originalmente colorido e apresenta-lo em preto-e-branco. A ideia, segundo eles, era valorizar os traços originais dos desenhistas – os grandes astros do volume – além de também minimizar as dificuldades de restaurar as paletas de cores originais das HQ’s, visto que as condições dos scans no geral eram muito ruins. É fácil de deduzir que, tanto para fazer esse trabalho com as cores quanto para adquirir originais em bom estado de conservação, o custo de produção e por consequência do preço de capa aumentaria muito. Particularmente, esse resenhista não se incomoda e até celebra a decisão: pode sim, ser considerado “descaracterização”, mas também é uma fato que muitas das cores dessas HQ’s eram adicionadas sem um propósito específico e, não obstante, nem todos os desenhistas tinham uma visão da colorização no mesmo nível. Assim, o preto-e-branco escolhido pelos editores cumpre bem sua função, e o trabalho magnífico dos desenhistas salta aos olhos de qualquer um. É necessário que esse precioso trabalho de restauração se estende até mesmo às fontes dos títulos, reconstruídas rigorosamente da maneira como foram utilizadas no material original, preservando aquela aura clássica sci-fi.
Embora, como dissemos, as histórias sejam deliberadamente trash – é o tipo de material que ajudou a construir o cânone e divertidamente estereotipizar a ficção científica clássica, ela também cumpre bem sua função no mesmo sentido: aqueles que lêem o volume subestimando sua narrativa pode, pontualmente quebrar a cara. Algumas histórias pincelam temas delicados como a ecologia ou à frente de seu tempo, como a objetificação feminina. Pelo menos metade dela aborda diretamente questões sociopolíticas relacionadas ao terror atômico e à Guerra-Fria; temas que muitos intelectuais “sérios” não abordavam com a mesma contundência. Também é necessário apontar que muitas dessas histórias eram multi-gênero, e bem distantes da homogeneização catártica abobada das aventuras contemporâneas: muitas dessas HQ’s têm finais lúgubres ou mesmo elementos de terror explícitos – o trabalho de Toth, por exemplo, ganha vida com esses valores, e podem parecer meio indigestas para um leitor que subestima esse volume.
Não obstante, esses quadrinhos reunidos compreendem uma parte do período da era de Ouro, entre 39 e 54, mas na sua imensa maioria mais próximas da segunda data que da primeira: são 4 histórias entre 39 e 40 e todo o resto entre 50 e 54. O que significa que elas influenciaram e chocaram o público ao ponto de terem sofrido o golpe mais forte direcionado a eles com o Comics Code Authority, o código de auto-censura dos quadrinhos, e sobre os quais falamos bastante no nosso vídeo sobre a EC Comics, casa de muitos dos artistas, nos anos 50, que estão presentes em Morcegos-Cérebro. Dessa forma, é necessário observar essas histórias – que são sim, de qualidade questionável – como devido cuidado histórico, pois existe aqui um zeitgeist muito mais valioso do que as narrativas em si.
Houston, we have a few problems
Tendo isso em mente, aí sim é necessário apontar alguns problemas muito sérios desse volume. Pois, para realiza-lo, foi preciso um extenso, trabalhoso e minucioso resgate, investigação e restauração dessas HQ’s – que, como já dissertamos vastamente acima, é feito para um público bastante específico de apreciadores e colecionadores. Só que tal intenção contrasta negativamente com erros sérios de revisão e edição, além de erros gravíssimos de ortografia que qualquer corretor do Word poderia resolver, escancarando que o mesmo cuidado que houve com a produção visual do volume não ocorreu na produção textual e contextual. Fora isso, como se trata de um volume de colecionador, seria necessário apontar esse fato em um prefácio que fosse menos particular dos editores e mais abrangente sobre o valor histórico do álbum – não é citado, por exemplo, que Michael Griffith é uma alcunha para o “Rei” Kirby – o que o tornaria acessível, quiçá, até mesmo para outras faixas de público que não apenas os fãs de quadrinhos hardcore que já tem um interesse específico em um material tão específico. Soma-se isso ao salgado preço de capa – cerca de 80 reais – e nós temos em mãos algo que não dá para culpar se ficar encalhado nas comics shops e livrarias da vida.
O saldo geral é até positivo – mas muito mais por causa da qualidade indelével da arte do que pela atenção dada ao valor histórico desse volume. É realmente lamentável visto que, conforme as HQ’s se tornam mais e mais populares e vão aumentando em distinção e em qualidade, seria necessário manter viva a memória desses gigantes de talento incomparável, que trabalharam a troco de muito pouco ou quase nada – Joe Shuster, que também aparece em Morcegos-Cérebro, que o diga. Uma pena. Tal qual os monstros do título, esse volume tinha tudo para ser de outro mundo.