Monstruário esconde uma sofisticada reflexão sobre o medo sob o véu do realismo fantástico
Platão disse, certa vez, que “é possível perdoar uma criança que tem medo do escuro; mas é inaceitável que os homens tenham medo da luz”. É uma citação providencial, já que a natureza dual do medo e a busca do ser humano pela sua compreensão, entre outros tópicos, é uma das muitas propostas de reflexão feitas na HQ Monstruário, de Lucas Oda e Mario Cau, publicada até aqui em dois volumes pela Jupati. Nela, os autores utilizam o bom e velho véu de alegoria da ficção para colocar sobre a mesa as diversas fazes – explícitas e implícitas – desse sentimento tão comum a todos nós.
Ficando suas raízes de forma pouco temerária no realismo fantástico, esse gênero tão confortável, mas ao mesmo tempo tão desafiador – uma primeira metáfora sobre o medo? – a trama nos apresenta Lucia, uma funcionária pública que trabalha em um departamento responsável pelo registro dos monstros de cada um.
No imaginarium da HQ (e aqui o uso do latim é apenas um afago às escolhas narrativas da HQ), um evento ocorrido na Baixa Idade Média, envolvendo uma figura histórica conhecida como Ulrico de Augsburgo, fez com que o conhecimento e existência desses seres chamados de “monstros” fosse oficialmente incluso no cotidiano de todos nós. No caso do mundo contemporâneo, até mesmo em nossos registros cívicos oficiais.
Os monstros em questão seriam representações manifestas de nossos piores medos, e a maneira como interagimos com eles definem muito da maneira como agimos e em como interpretamos o mundo e as pessoas ao nosso redor. No caso de Lucia, é uma relação tóxica, para usar um eufemismo. Ela se sente muito pouco confortável consigo mesma e com os outros, e isso inclui, tanto como causa como consequência, sua relação com seu monstro, um espectro de origem escocesa conhecido como banshee.
Esse fardo de si mesma e sua relação elusiva consigo e com o mundo ganha novas possibilidades de serem ressignificados quando, em seu trabalho, ela encontra um único registro que não possui um monstro descrito – algo totalmente inaudito. A partir dali, Lucia parte em uma jornada, tanto geográfica quanto filosófica e emocional, em busca da pessoa sem monstros e o que a vida para esta significa.
Olhando para o abismo
À primeira vista, a HQ pode parecer um pastiche de exercício gaimaniano – o que por si só não seria exatamente ruim, só bastante derivativo. Mas conforme a narrativa avança, percebemos que as pretensões do escritor Oda para ela vão muito além. Existe aqui um claro destrinchamento da natureza do medo em diversas camadas, que são apresentadas sutilmente na forma de inserções de narrativas paralelas ao roteiro principal, assim como uma costura bastante interessante de pensadores e escritores conhecidos pelas suas contribuições assertivas sobre ela lado menos glorificado da nossa existência nesse mundo.
A começar pela própria protagonista, que se fez doutora e é especialista na obra de Augusto dos Anjos – e não é muito difícil perceber desde o início o porquê da escolha de um simbolista pessimista como foco da atenção de Lucia. Além deste, outros autores também são pontualmente percebidos, como os nominalmente citados Nietzsche, Wittgenstein e Kierkegaard, até outros que passeiam pelas páginas sem serem evocados, como Leopardi e Schopenhauer.
Dessa forma, entendemos o medo em seus diversos desdobramentos individuais e coletivos. O que é bastante interessante sobre a narrativa é sua qualidade fluida. Aliás, é bastante incidental que o autor de O Mundo como Vontade e Representação entre as referências do autor. Entre seus dois volumes, existe na HQ uma transição bastante clara de uma abordagem mais sufocante, generalizada e profunda do medo enquanto um elemento definidor e limítrofe da condição humana para uma abordagem mais direta, individual e conscientemente psíquica – o que, incidentalmente, impede que a trama ganhe um tom desnecessariamente trágico e perca um pouco do seu potencial de reflexão.
Dizemos isso porque, apesar de Lucia ser uma protagonista trágica, a trama e contexto em que a personagem se inserem permitem a visualização de um quadro mais abrangente. É um recurso narrativo inteligente, que permite que o autor ofereça perspectivas aproximadas e distanciadas da natureza do medo, sem ter que se render à progressão da história. Monstruário talvez perdesse caso fosse uma história sobre Lucia e seu monstro, e não sobre Lucia enquanto ponto de vista para nossos próprios monstros.
A arte de Mario Cau potencializa muito bem todas essas escolhas narrativas. Monstruário ganha ares de uma trama muito mais intensa do que às vezes realmente é pelas escolhas estilísticas e de narrativa visual feitas pelo artista. Se a narrativa é fluida, os desenhos também o são: Cau consegue transmitir toda uma gama de emoções nos personagens, mesmo quando os quadros parecem sobrecarregados de elementos visuais.
Não somente, mas o contraste entre o design ligeiramente caricato das figuras humanas e o realismo dos ambientes também chama a atenção pela sobriedade e alta qualidade da arte. Mas o ápice é realmente seu trabalho com os monstros. Ao contrário do que se pode pensar, não são meras abstrações aberrantes unidimensionais. Mesmo os monstros possuem nuances – da mesma forma que o medo é um sentimento complexo, tanto de forma individual quanto social e coletiva, suas manifestações também o são, e os monstros ganham presença na trama justamente porque não são apenas abjetos, mas, em muitos momentos, incomodamente relacionáveis ao amigo leitor.
Meu medo é…
As únicas ressalvas feitas aos volumes são algumas escolhas pontuais. Oda claramente possui um grande repertório literário, e usa frequentemente uma alternância de idiomas para causar uma certa estranheza proposital ao leitor. Como conceito, é interessante, mas em muitos momentos isso pode tornar algumas ideias da HQ um tanto herméticas, visto que já é preciso algum esforço para o leitor mais casual relacionar completamente a motivação das inserções paralelas à narrativa principal. Um mero glossário em futuras edições poderia melhorar substancialmente esse processo tornando mais inclusivo para os leitores, sem precisar afetar a qualidade da HQ.
Não obstante, a arte, em alguns momentos sofre com a falta de sintonia com a colorização. Como os traços de Cau são abundantes e volumosos, e os painéis muitas vezes cheios de elementos visuais, a paleta por vezes acaba poluindo mais do que distinguindo as cenas, principalmente pela escolha de muitos tons pastéis. É claro que isso pode ser interpretado como um signo visual da confusão muitas vezes provocada pelo medo, mas como ferramenta semiótica na HQ por vezes parece um tanto excessiva.
Como colunista, apenas uma coisa me frustra: Que Monstruário não seja mais comentada por aí. É uma pequena pérola contemporânea do nosso realismo fantástico menos celebrada do que deveria, principalmente por tratar de maneira tão inteligente e pertinente de um conceito tão universal quanto este. Principalmente pela maneira como se encerra – e sim, isso é um estímulo deliberado ao leitor para ir atrás da HQ – Monstruário poderia muito bem servir como a terapia – individual e coletiva – da qual podemos nos servir tão bem em tempos como esse.
Mas é compreensível. Afinal, temos medo de pouca coisa mais do que de nós mesmos…