Um recorte romanceado e lírico da Corrida Espacial em Laika
Todo mundo, ou quase, sabe que o primeiro ser vivo terrestre mandado ao espaço foi a cadela Laika, empreendimento da União Soviética, certo? Isso em 1957, em meio às tensões crescentes da Guerra Fria. Se você descobriu isso ainda na infância, bem provável que o fato histórico não tenha sido passado de forma completa. Isso porque nunca houve a intenção de trazê-la de volta a salvo. Parece pouco como premissa, mas o britânico Nick Abadzis conseguiu criar uma narrativa consistente, relevante e, acima de tudo, emocionante, em Laika (idem).
Compre clicando na imagem abaixo!
Lançada em 2017 no Brasil, através do selo Barricada da editora Boitempo* (do álbum Marx), a HQ foi originalmente publicada em 2007 pela norte-americana First Second. Ganhou o Eisner no ano seguinte, na categoria Melhor Publicação para Adolescentes. Abadzis tem uma carreira longa nos quadrinhos, com passagens pela lendária revista 2000 AD, assim como pela Marvel e DC. Nesta última, inclusive, durante a chamada Invasão Britânica, escreveu Millenium Fever (1995), com arte de Duncan Fegredo.
*(Também responsável pelos livros de China Miéville no Brasil – A Cidade & A Cidade (esse também tema de um vídeo) e Estação Perdido)
Com esses trabalhos no currículo, é um tanto inesperado que ele tenha resolvido contar uma história como Laika. Responsável também pela arte, o autor trilhou um caminho que poderia, facilmente, descambar para o sentimentalismo puro, apoiado no apelo que os cachorros costumam ter sobre nós. Não é o caso. Seria mentira dizer que isso não pesa, mas é apenas um dos elementos que compõe todo o pano de fundo.
Realidade com belos toques de ficção
Nick Abadzis não estava interessado em um retrato fiel dos fatos. Nem poderia, já que seria impossível apurar a vida pregressa da nossa protagonista ou descobrir como se sentia. Mesmo assim, ela é quem nos dá um dos pontos de vista do roteiro, graças a um passado que o autor criou, até sua captura e envio à instalação que cuidava das cobaias. Os sentimentos dela durante a trajetória sofrida são retratados com a liberdade que a linguagem das HQ’s permite.
Como qualquer cão das ruas naquele lugar e período, Laika – ou melhor, Kudriávka – sobrevivia como era possível e evitava a carrocinha. Antes disso, Abadzis nos apresenta a pequena heroína logo depois de nascer, sofrendo em um acaso que a coloca nas mãos de pessoas que não se importam nada com ela. O elo com o leitor já se estabelece aí, mas outros personagens interessantes vão dividir o núcleo principal.
O Engenheiro-Chefe Korolyov, criador do satélite Sputnik, primeiro objeto lançado ao espaço pelo Homem, em outubro de 1957, é uma peça chave na cadeia de acontecimentos. Um homem que sobreviveu ao Gulag na Sibéria e conseguiu sua reabilitação já é uma figura fascinante por si só. Sua caracterização dentro da HQ transita provoca admiração pela sua proeza, o que também cria um contraste interessante na ambição e necessidade de agradar Kruschev, naquele momento, o homem mais poderoso da URSS.
Com um prazo de menos de um mês, o Sputnik II precisa ser lançado para coincidir com o aniversário da Revolução Russa e Korolyov aceita o desafio. É o incidente que nos apresenta aos dois outros pontos de vista deste quadrilátero narrativo.
O cientista da Força Aérea Soviética, Dr. Olieg Gazenko, também é uma figura real. Com um cargo importante no Instituto de Medicina da Aviação, ele não é insensível quanto aos inúmeros cães que são preparados para experimentos diversos, mas faz de tudo para manter a postura profissional.
Mais sensível a isso é Elena Dubrovskaia, personagem criada para a HQ, recém contratada para a função de lidar diretamente com eles. Apesar das orientações sobre não apegar-se demais, todos nós sabemos como isso é difícil com determinados animais.
A preparação de Kudriávka, palavra que significa “enrolado” e escolhida por conta do rabo da cadelinha, é levada sem pressa pelo roteiro. Isso dá tempo aos leitores de conhecerem melhor os outros personagens, que acabam encantando-se com a tenacidade desta pequena sobrevivente. O roteiro nos entrega apenas o essencial sobre essas vidas, mas o bastante para entendermos a situação de cada um.
Texto quase perfeito, com arte e diagramação que o valorizam
A única ressalva acabou caindo sobre uma escolha pouco inspirada na estrutura do texto. Abadzis permite-se a não linearidade onde não havia necessidade, ainda obrigando-se a revisitar um momento que o leitor já havia testemunhado. Esse desvio redundante é um pecado menor na realização, algo atenuado pela boa concepção visual do conjunto.
O autor mostra segurança na construção visual de seu roteiro. Aliás, Laika é o tipo de história que só funciona a plena potência nos quadrinhos. O texto tem sua força intrínseca e os desenhos cartunescos de Abadzis servem bem ao tipo universo criado. Além disso, a narrativa visual é fluida, mesmo com uma quantidade de quadros relativamente grande em algumas páginas. Isso é o que pode incomodar alguns leitores, pois o formato menor da edição (15,2 X 22) dificulta um pouco a leitura.
Mesmo assim, chama atenção o feliz resultado de um álbum que mistura uma diagramação mais clássica com momentos pontuais mais oníricos, ousando um pouco mais nos picos dramáticos. Também é bem sucedido quando precisa intercalar eventos, criando algo semelhante a um filme com montagem paralela. São detalhes como esse que conferem um dinamismo que prende o leitor até o fim, mesmo já sabendo como termina.
Laika não é apenas sobre o papel histórico de um pobre animal
Não há como negar que o álbum vai falar diretamente ao coração de quem gosta de cachorros. Sem ser gratuito, vai fundo neste sentido, emocionando bastante antes mesmo do seu final. No entanto, podemos interpretar tanto o fato quanto a HQ de uma forma que vai além desta superfície.
O caminho de Laika, de abandonada a ícone da Corrida Espacial, é também uma história sobre como os jogos de poder afetam e usufruem de vidas “menos importantes”. Naquele contexto, é ainda mais triste que a conquista científica de porte visasse apenas ostentar uma suposta superioridade ideológica, pelo menos para Kruschev e a cúpula Soviética. Evidente que essa postura encontrava seu exato reflexo nos EUA. No fim da edição, uma frase dita em 1998 pelo verdadeiro Oliég Gazenko aumenta nosso pesar diante dessa dura constatação.
A HQ Laika nos faz encarar e refletir sobre a insignificância das pessoas comuns em cenários como esse. Por outro lado, como no mangá O Cão Que Guarda As Estrelas, também nos faz querer abraçar um cachorro (ou gato, por que não?), seja o nosso ou do vizinho. Já significa bastante, pois pouca gente discordaria que fazer um carinho em nossos amigos peludos deixa nosso dia muito melhor.