Anne-Charlotte Gauthier cria a pequena, mas emblemática, saga de uma pessoa transgênero em seu processo de aceitação e auto-aceitação
Quando a gente é criança, o mundo é um lugar mais “preto-no-branco”. As regras são mais claras, mas também mais totalitárias. Embora, no geral, nós tenhamos o (mau) hábito de idealizar o universo e os valores infantis e adolescentes, como sendo algo mais “puro e verdadeiro”, a verdade é que eles podem ser bem cruéis. Principalmente com aquilo que eles consideram “diferente”. Justin, o protagonista do epônimo álbum da autora Anne-Charlotte Gauthier, aprende isso na pele.
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Mas afinal, o que significa “ser diferente” do ponto de vista de um universo que é caracterizado justamente pela ausência de referências e experiências, como é o das crianças e adolescentes? Simples – aquilo que é dito ser “diferente” por suas fontes de referências, os adultos. Você sabe onde isso vai terminar, amigo leitor: em uma história que, mais uma vez, vai nos apontar a explícita perpetuação de certos valores sociais que ainda cerceiam a liberdade de muitas pessoas de ser e expressar quem sentem que são – e que, em última instância, objetivamente são.
Lançado esse ano pela Editora Nemo, a história acompanha a aceitação de Justin por sua “casca”, Justine. Explicamos. Justin, nascida geneticamente no gênero feminino, não se identifica psíquica ou emocionalmente com esse gênero. Sendo membro de uma sociedade que, por inúmeros motivos, reconhece apenas a possibilidade – perceba como escolhemos “possibilidade”, no lugar de “existência” – de dois gêneros distintos, Justin, a psique que habita o corpo de Justine, sofre na maior parte do tempo.
Dessa forma, Anne-Charlotte Gauthier cria uma pequena saga, observando desde o desconforto de Justine com aspectos de si que ainda não compreende, passando pelo momento em que começa a discernir suas noções de identidade, sexualidade e gênero – até o momento em que, obviamente, suas escolhas em relação a si mesma entrarão em confronto direto com dogmas sociais anacrônicos, egressos de inúmeras fontes: preconceito, ignorância, desconhecimento, conservadorismo. Quando Justine finalmente aceita Justin, o percurso parece ter sido tão extenuante quando seu desfecho, catártico.
Extenuante porque, aparentemente, apesar de atribuirmos características como uma visão de mundo binária, intolerância ao diferente, e ignorância em relação à referências e experiências ao universo das crianças e sua imaturidade, é desnecessário dizer que a fonte do cansaço e da tristeza de pessoas como Justin são oriundas justamente do comportamento análogo daqueles que deveriam ser fonte de conhecimento e racionalidade: nós, os adultos.
Gauthier, que já havia tratado de forma bastante sensível questões relacionadas ao homossexualismo em O Enterro das Minhas Ex, traz sua assinatura e seu estilo para um tema ainda mais espinhoso e complexo – se ainda temos dificuldade de aceitar a homossexualidade como algo natural, a noção de transexualidade ainda está à anos-luz de ser sequer compreendida pela maior parte das pessoas.
Estágios da ignorância
Isso é cuidadosamente apontado pela autora no volume – em muitos momentos, Justin, antes de sofrer o preconceito, precisa explicar para as pessoas o que “é”, como se fosse um objeto de estudo. Para, aí sim, sofrer o preconceito. Quando, logo no início, Justine se vê sem saber para qual time ir – meninos ou meninas – quando o professor pede para que se separem times dos gêneros. Sua percepção de si – ergo, sua noção de alteridade – não se resumem a uma concepção binária. Isso faz com que ele sofre dentro dela – angústia exponencialmente aumentada não tanto porque seus coleguinhas não entendem o que ela é, mas porque o universo adulto parece não apenas incapaz de aceita-la, como também de compreende-la.
Se o amigo leitor ainda não entendeu a alfinetada dada no início do texto, é essa: crianças podem ser cruéis, sim, devido à sua imaturidade e falta de referências. Mas é inaceitável para os adultos de uma sociedade civilizada se recusar a lidar com o tema da transexualidade – e não seja hipócrita: você sabe que não lidamos – da maneira como deveria: com naturalidade, aceitação e objetividade ética. A realidade é muito mais cruel do que essa – tratamos essa classe de pessoas como tal: uma “classe”, como se fossem indivíduos à parte da vida humana “normal”.
E, como não poderia deixar de ser, esse tipo de comportamento descamba para algo que Anne-Charlotte Gauthier tem a sensibilidade de tratar indiretamente: violência brutal dirigida à essas pessoas. Mas não apenas a violência física – nem vamos entrar no demérito do nosso país realizar, faz décadas, um genocídio sistemática de transgêneros e homossexuais – como também a violência psicológica e moral. É um cerco comparável apenas ao piores regimes fascistas; mas que nós aceitamos, porque é simplesmente mais fácil perpetuar valores oriundos de quase um milênio atrás.
Sensibilidade no lugar da militância
Antes que o amigo leitor mais emburradinho pense que se trata de uma obra militante, pelo que eu disse acima, fique tranquilo: o posicionamento político fica por minha conta. Como dito na resenha anterior sobre a autora, Gauthier tem um estilo deliberadamente simplista, graciosamente caricato, de linhas fortes e expressões destacadas, que tem um objetivo primário: criar um forte laço empático entre seus personagens e o leitor. Isso implica que, mais do que tentar transmitir uma determinada agenda socio-política, a autora está interessada em representar essas pessoas como o que elas são: pessoas.
Pessoas com sentimentos, pessoas com dúvidas, pessoas com aspirações. Pessoas que nasceram tarde demais a ponto de serem severamente punidas por serem quem são; mas ainda cedo demais para serem reconhecidos como iguais por aqueles que, confortavelmente, se encaixam nos padrões pseudo-binários da sociedade herdeira de uma cultura judaico-cristã ocidental. Gauthier, como um ser humano interessado em representar seres humanos e não suas ideologias, destaca, dessa forma, o quanto nossa maneira de pensar muitas vezes está em total descompasso com nossa maneira de ser – muito menos por maldade, e muito mais por ignorância.
Aristóteles tem uma máxima ética interessante sobre esse assunto: “busque não justificar por maldade o que pode ser melhor explicado pela ignorância”. Existem muitas interpretações para isso. No meu entender, para ele, toda ação má tem origem no desconhecimento da natureza das coisas. Da mesma forma, acredito que Anne-Charlotte Gauthier entenda que nós não agimos dessa forma com as pessoas transgênero pelo nosso desejo de feri-las; mas porque, em nossa ignorância, não conseguimos compreender, e/ou reconhecer, que elas somos nós.
Gostaria de poder distribuir Justin para todas as crianças, adolescentes e adultos possíveis. Porque é uma boa leitura, sim, mas porque também é elucidativo de muitas formas. E porque permitiria a muitas Justines que pudessem aceitar e revelar seus Justins em paz.