A tragédia de Héctor Abad Gómez em O Azul Indiferente do Céu
Há não muito tempo, um famoso cineasta brasileiro comentou que o povo daqui perdeu a sensibilidade para o absurdo, referenciando um crime bárbaro cuja repercussão não passou da exploração midiática comum poucos dias após o evento. A resignação é um comportamento inevitável quando certas coisas são mais frequentes do que deveriam, por mais revoltantes que sejam. Um contexto, que, aliás, é um traço comum à América Latina em si. O Azul Indiferente do Céu se ocupa de um fato ocorrido na Colômbia, mas que, infelizmente, não nos parece nem um pouco estranho.
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Escrito e ilustrado pelo quadrinhista Shiko e publicado pela editora Mino, o álbum procura tocar exatamente em um ponto sensível, hoje anestesiado, de cada um de nós. Valendo-se de um fato, o assassinato de Héctor Abad Gómez, em Medellín, ocorrido em 1987, o autor chama atenção para a vida humana tratada como mercadoria barata. Gómez morreu pelas mãos de um matador contratado, antes mesmo que seu artigo fosse publicado, denunciando que a vida de um homem não valia mais do que oito dólares.
Médico, escritor e presidente da Comissão de Direitos Humanos, a vítima pautou sua trajetória pela defesa da democracia. Lamentavelmente, essa premissa parece tão comum a nós que nem valeria escrever um roteiro baseado nisso, mas é aqui que Shiko nos faz um favor. Daquela forma tão subjetiva que só a arte é capaz, ele constrói sua narrativa de uma forma que é difícil ficar indiferente. Não é novidade, de forma alguma, que os Quadrinhos podem servir muito bem a propósitos além do entretenimento (Refugiados e Sendero Luminoso são bons exemplos), mas O Azul Indiferente do Céu consegue uma proeza neste sentido.
A beleza de uma narrativa visual bem elaborada
Com o título, apropriadamente, citando Borges, a HQ tem o mérito de nos fazer pensar sobre o assunto por, justamente, explorar os recursos que a mídia oferece. Seria tentador para inúmeros autores confiar apenas nesta premissa trágica para cativar os leitores, mas o texto – simples e objetivo – deu origem aqui a uma narrativa espetacularmente construída, como se um filme se desenrolasse diante de nós.
Shiko está muito além daquele didatismo modorrento, que prejudica inúmeras HQ’s que lidam com fatos. Em nenhum momento o formato “cartilha”, com painéis meramente ilustrando uma passagem descrita em uma caixa de texto, é lembrado. Com uma ausência quase total de falas e pouca narração em recordatórios, as imagens dão seu recado de uma forma esplêndida. A fluidez narrativa, com vários planos de detalhe que interligam composições e exploram recursos gráficos, cria uma experiência bastante peculiar para os leitores.
É uma reconstituição com suas liberdades, mas utilizando ferramentas narrativas poderosas. É exatamente isso que torna a mensagem mais contundente, pois a forma, apesar de muito bem ilustrada, não se sobrepõe ao conteúdo. Pelo contrário, pois nos faz pensar muito mais no caso de Héctor Abad Gómez e de vários outros similares a ele, além das contradições e ambiguidades inerentes ao contexto. Certamente, esse é um dos objetivos do artista.
A única ressalva é relativa, por conta de um detalhe que nem diz respeito ao trabalho em si. Diametralmente oposto ao tempo de reflexão posterior que estimula, O Azul Indiferente do Céu não exige mais do que poucos minutos. Com menos de cem páginas e pouco texto, é uma leitura que passa voando. É provável que algumas pessoas se incomodem em relação ao valor do álbum dentro desta comparação, então, é bom ter isso em mente antes de comprar.
Mas, independente do quanto alguém reclamar da relação custo X benefício, o valor da obra é incontestável. Não apenas artístico, é bom salientar.