A HQ Deslocamento é singela e sensível, despertando a compaixão e o respeito pelos mais velhos
Que tal viajar para o Caribe a bordo de um cruzeiro? Mesmo para aqueles que não gostam de calor, essa seria uma oportunidade tentadora. Principalmente, para desconectar-se por um tempo do estresse do dia-a-dia. Mas, e se você tivesse que ir a um cruzeiro para idosos acompanhar seus avós? Quem tem familiares com idade avançada, sabe que viajar com eles e os cuidados envolvidos não são tarefas fáceis.
Lucy Knisley, artista freelancer, jovem e solteira, tinha 27 anos quando decidiu ir com seus avós paternos nonagenários numa viagem de sete dias em alto mar pelo Caribe. Não foi ideia da família, muito menos dela. Mas, este era um sonho do casal juntos há 67 anos que, sem avisar ninguém, se inscrevem para irem junto com um grupo da casa de convivência. Essa história é narrada na graphic novel Deslocamento: Um Diário de Viagem, lançamento da Editora Nemo.
Uma narrativa autobiográfica sincera e comovente
De forma leve, sensível e sincera, a quadrinista norte-americana relata diariamente a relação e os cuidados com os avós e, também, a angústia de vê-los tão distantes de como são nas lembranças guardadas. Criado durante a viagem, em cada página do diário, percebemos como a vida é frágil e damos conta de que nossos avós valem muito mais do que pensamos.
Quando falamos de avós, cada pessoa tem uma história para contar. As férias escolares na casa deles, os bolos caseiros, o café com um aroma que ninguém mais é capaz de reproduzir da mesma forma, as tardes gostosas vendo TV com o avô ou mesmo os abraços apertados que nos davam juntamente com lições que não se aprendem em livros. Os fios grisalhos e as rugas não são apenas consequência dos anos que se passaram, mas sobretudo, são o reflexo da sabedoria.
A narrativa em primeira pessoa é bem simples, direta e linear. Não é um quadrinho sisudo. Há também alguns momentos cômicos, necessários para quebrar a sensação de impotência diante da decadência física e mental dos familiares. A artista descreve seus pensamentos, suas angústias, suas experiências e também as recordações que mantém dos avós quando era mais nova. Os personagens são apresentados a partir da visão de Lucy, e essa é uma questão interessante. A artista foi corajosa ao publicar um diário. Afinal, revelar pensamentos e pontos fracos, não é uma decisão fácil de se tomar. E esse caráter faz com que a obra não tenha grandes picos dramáticos ou momentos catárticos, pois não se trata de uma ficção concebida a partir de um manual de roteiro e sim, como uma espécie de terapia.
Desde o início da história, Lucy conta que levou na viagem uma cópia do livro de memórias do avô, que, a princípio, seria uma maneira de iniciar conversas e ouvir grandes histórias. Porém, ao invés disso, o livro torna-se uma companhia durante a solidão. Esse é um dos pontos em que o leitor é instigado a terminar a leitura. Nesta espécie de diário, as palavras são escritas pelo próprio avô relatando as experiências que teve como piloto de patrulhamento durante a 2ª Guerra – mostrando uma parte dele que ela não vivenciou.
O traço infantilizado da artista auxilia na identificação e sintonia com a história. As ilustrações, diagramadas sem seguirem exatamente uma ordem, remetem aos livros infantis, o que não as torna de maneira alguma inadequadas. Por abordar a vivência com avós, as melhores lembranças que temos são as de quando éramos crianças, e assim, por meio dos desenhos coloridos, como se pintados amadoramente com lápis de cor, viajamos facilmente pela história, despertando somente a saudade de momentos que se foram. Ou não – no caso dos sortudos.
Por ser uma obra que toca cada leitor de uma maneira única e pessoal, é recomendado ler sozinho num ambiente calmo e relativamente isolado. Deslocamento: Um diário de viagem expõe a fragilidade da vida. É sensível e capaz de despertar a compaixão e o respeito pelas limitações humanas. Mostra a transformação como resultado do autodescobrimento, quando passamos a dedicar mais tempo àqueles que nunca colocaram barreiras para nos fazer felizes.
Gosta de quadrinhos autobiográficos cuja história gira em torno de dramas familiares? Então, confira nossa análise de Umbigo Sem Fundo, de Dash Shaw!