O subtítulo do nosso texto anterior para Gavião Arqueiro: Minha Vida Como Uma Arma foi “na mosca”, um vernáculo para descrever um acerto no alvo com perfeição. Não é exagero então dizer que a continuação do primeiro volume – Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos (Hawkeye Vol. 2 – Little Hits) – é um “Robin Hood”, nome dado quando um arqueiro consegue acertar uma flecha sobre outra flecha. Ou seja, beira a perfeição.
Apesar de ser o segundo volume, ele impressiona surpreendentemente como o primeiro. O trabalho de Matt Fraction no roteiro continua algo de cair o queixo. Ainda abusando de uma diagramação dinâmica e uma disposição de quadros que aproveita perto do absoluto os espaços permitidos pela página em branco, a edição tem um ritmo poucas vezes visto em uma HQ de continuidade de super-heróis. Fraction consegue flutuar com perfeição entre as cenas de ação e os diálogos que compõem a linha narrativa, sendo que ambos não se sobrepõem – eles são necessários um ao outro, e fazem com que as histórias ofereçam muito conteúdo ao mesmo tempo em que passam voando.
Os diálogos muitas vezes acontecem no ritmo de cenas de ação e as cenas de ação são fluidas como diálogos. O que torna tudo ainda mais impressionante é o tom das histórias. Apesar de haver nesse volume a ameaça pontual de vilões e criminosos – como o retorno da “gangue do moletom” – as histórias são no geral bastante leves, pois o roteirista mantém a coerência do volume anterior, focando muito mais nas relações pessoais de Clint Barton do que no seu expediente como super-herói. Mesmo as cenas de ação como Gavião Arqueiro envolvem suas próprias motivações pessoais, que evocam sua relação com as pessoas do prédio em que ele mora e defende – o arco com Grills é praticamente só Barton, sem nenhum “Gavião Armeiro” – leia o volume para entender – seus valores particulares, no arco com a ruiva apresentada na edição anterior, além da sua dificílima – e para nós, muito divertida – relação com suas muitas ex-amantes vingadoras.
Mas o grande destaque entre as coadjuvantes acaba sendo a mais instigante personagem nesse momento da vida de Barton – Kate Bishop, a Gaviã Arqueira. Embora compartilhem a mesma alcunha, certamente não possuem as mesmas escolhas por curso de ação, colocando Bishop em conflito com todos os aspectos da vida de Barton. De muitas formas, a personagem acaba sendo o grande ponto de conflito do volume, muito mais do que qualquer vilão, além de participar da HQ mais tensa e misteriosa do encadernado, que apresenta o lúgubre assassino Kazi, prometendo uma continuação ainda mais tensa para a história. Ter Kate como protagonista dessa história também é destacado pelo fato de que essa é uma de duas histórias que não são assinadas por David Aja – esse volume tem o traço de Francesco Francavilla. Tudo em Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos são detalhes a serem esmiuçados e apreciados.
Falando dos detalhes, o que dizer sobre David Aja, esse desenhista que conhecemos bem e admiramos pacas? É desnecessário falar mais sobre a arte dele – tudo o que podíamos louvar, já louvamos na resenha do primeiro volume. Mas tudo continua impressionante. O minimalismo no uso das cores, o traço “sujo” mas absolutamente preciso, o pensamento semiótico de um designer funcionando a favor de uma HQ. O volume da Panini ainda nos agracia com um breve – mas delicioso – extra, que demonstra como a colorização é pensada e aplicada para obedecer e destacar a filosofia minimalista do Gavião Arqueiro. Todas as habilidades do espanhol são soberbamente utilizadas por Fraction – ou vice-versa – para construir uma HQ única, que não é exagero dizer que certamente já entrou para o cânone do personagem da Marvel. Com certeza, é uma das melhores HQ’s do século XXI até aqui.
Se o amigo leitor duvida de nós, sugerimos ir direto à última HQ do volume, “Pizza é o meu negócio”, estrelada por ninguém menos que o cão adotado por Barton no primeiro volume, Muzzarela. Sim amigo leitor, a última HQ dá destaque ao coadjuvante mais carismático criado por Fraction para essa fase do Gavião. E antes que você ache que o resenhista está ficando ou já é um idiota, leia a HQ. Todo o trabalho semiótico minimalista pensado por Fraction e Aja é usado com perfeição aqui para narrar uma breve aventura do cãozinho, que acontece paralela aos eventos principais do volume, fazendo uma espécie de resumo e retomada de tudo o que aconteceu até aqui, da forma mais brilhante e singela possível.
É até difícil para o resenhista descrever o quão incrível é essa HQ, porque partindo do ponto de vista limitado, mas extremamente irreverente e inovador que é a visão de Muzzarella sobre a aventura do Gavião até aqui, nós somos presenteados com uma verdadeira AULA de estrutura narrativa e semiótica de uma HQ, que mesmo possuindo um protagonista canino, nos permite a total imersão na narrativa. “Pizza é o meu negócio” é uma HQ para ser ensinada em escola.
Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos é o segundo volume de uma fase que não apenas vale a pena o leitor ter na estante, mas é necessária para qualquer um que se diga apreciador de HQ’s. É um daqueles arcos que, daqui a uns 20 anos, especialistas, apreciadores e bocós pretensiosos – como este que vos escreve – ainda estarão babando sobre. Com o belo tratamento dado a Panini para o volume aqui no Brasil, além de tudo, fica lindo para decorar sua coleção também.
Pequenos Acertos? De jeito nenhum. É praticamente um “Robin Hood”.