Faz algum tempo que a Marvel tem uma proposta geral para o seu universo regular: desmontar os seus pesos-pesados e tirá-los de seus pedestais, ao mesmo tempo em que valoriza personagens anteriormente considerados de segundo escalão. A idéia é renovar o seu panteão principal e ao mesmo tempo oferecer, sem precisar arriscar muito, histórias que não sejam conectadas ao contexto de integração caótico em que o Universo Marvel (assim como a Distinta Concorrência) se vê enfiado a todo tempo. Uma parte essencial dessa estratégia é entregar esses personagens para escritores talentosos e dar a eles uma considerável liberdade criativa, algo impensável para os personagens da linha de frente nesses tempos de infindáveis “mega-sagas-cósmicas”. Ao optar por esse rumo, a Marvel teve mais acertos do que erros com os personagens e artistas escolhidos. Um dos grandes acertos é Gavião Arqueiro: Minha Vida Como uma Arma, fase comandada por Matt Fraction, David Aja e Javier Pulido, que a Panini lançou recentemente como encadernado em capa dura.
Quem abre uma HQ de continuidade hoje em dia, seja da Marvel ou DC, tem um grande desafio: entender o que diabos está acontecendo. Nesse aspecto, esse arco, anteriormente publicado aqui na revista mix Capitão América & Gavião Arqueiro, é uma deliciosa mudança de ares. Saímos das grandiloquentes epopeias universais para o chão de Nova York, onde os maiores desafios de Clint Barton não são super-vilões ou alienígenas, mas sim tocar a vida de uma forma razoável em meio a loucura que é ser um vingador. A maior vantagem disso é muito objetiva: um leitor desavisado pode pegar esse encadernado sem medo, pois ele não exige muito conhecimento prévio para ser totalmente apreciado. E ainda que não haja conhecimento algum, tudo bem. Os arcos se sustentam sozinhos.
A ideia em si não é original, sequer dentro da chamada “Nova Marvel”. Ela foi aplicada em outros títulos que se tornaram sucesso de crítica, como a recriada Miss Marvel de Wilson e Alphona, o ressuscitado Cavaleiro da Lua de Warren Ellis ou até mesmo um herói mais conhecido do grande público, o Demolidor, que a Marvel sabiamente entregou nas mãos do grande Mark Waid. Mas o que importa aqui não é a originalidade da estratégia, e sim a sua execução, que Matt Fraction tirou de letra, por sinal, em três grandes acertos.
O primeiro, a história em si. Ao colocar Barton para lutar por seus vizinhos, salvar cachorros e, em última instância, para sobreviver, Fraction nos apresenta uma nova faceta de um personagem que nunca foi apropriadamente trabalhado. Embora ele seja um personagem antigo da casa, tendo sido inicialmente um vilão do Homem de Ferro, para logo após se tornar parte da segunda geração dos Vingadores, ao lado do Capitão América, Mercúrio e Feiticeira Escarlate, Barton sempre foi o personagem complementar, o coadjuvante. O homem sem poderes que apresentava tal perspectiva em meio aventuras com gênios da ciência e deuses.
Pois bem, em Minha Vida Como uma Arma todos esses gênios e deuses estão fora de cena. A única companhia que Barton tem aqui é a de Kate Bishop, antiga integrante dos Jovens Vingadores que assumiu o manto do Gavião durante o arco Reinado Sombrio, e o que eles enfrentam não poderia ser mais comum: senhorios abusivos, criminosos hilariamente estereotipados em moletons, e por aí vai. O fato de ambos enfrentarem desafios tão ordinários, e de se arrebentarem com frequência no processo, cria uma conexão muito fácil com o leitor. Conexão essa que não é explorada com pieguice condescendente, mas de uma forma que de fato constrói uma personalidade distinta para Barton e Bishop; personalidades essas que nunca haviam sido exploradas por completo antes. O fato de Barton ser um atirador sem igual é um mero detalhe que faz parte dessa construção. É como ver um encanador ou um cozinheiro, excelentes no que fazem, cujas vidas não se resumem a isso.
O segundo acerto está na estrutura narrativa. O autor usa quantos quadros forem necessários e não se priva de fugir ao padrão quando isso serve à história. A primeira sequência de ação, por exemplo, é feita sem diálogos, com breves narrações em off, dando um ritmo quase cinematográfico – não no sentido pejorativo – para ela. Quando é preciso construir os personagens, o mesmo – a sequência em que Kate fica “impressionada” com a habilidade de Clint é muito engraçada. Fraction demonstra um domínio como poucos sobre a distribuição de quadros em uma página, supondo que a concepção tenha partido inteiramente dele.
Falando sobre o humor, temos o terceiro acerto. Muitos roteiristas menos talentosos e inspirados usam o cotidiano absurdo dos heróis para gerar humor, mas quase sempre da mesma forma – usando cinismo e expressões blasé. Fraction vai além. O humor aqui é uma válvula de escape para momentos de tensão, e por isso mesmo o vemos apenas pontualmente. Porém, muito bem usado, não apenas no contexto da história, mas usando a própria “mitologia” particular do personagem, como as famosas flechas multi-funcionais, descaradamente plagiadas do Arqueiro Verde em uma época do mundo mais divertida e mais inocente.
Nesse aspecto, também temos que destacar a arte de David Aja. Minimalista, mas precisa e bela. Aja não quer roubar a cena. Os desenhos acompanham a vida de Barton – são pragmáticos, mas tremendamente elaborados naquilo que lhes são pedidos. Aja consegue equilibrar um desenho que é aparentemente “sujo” com a habilidade de não desperdiçar uma linha sequer. Se Fraction consegue construir boas sequencias alternadas de diálogos e ação, muito se deve ao dinamismo preciso e elegante dos desenhos de Aja. Além disso, também ficaram a seu encargo a reformulação do uniforme e a criação das capas. Estas últimas, incidentalmente, são incríveis. Belíssimamente bem desenhadas e organizadas, um sucesso que só é possível devido à experiência de Aja não apenas como desenhista, mas também como designer, que utiliza muito bem a colorização de Matt Hollingsworth para valorizar o seu minimalismo.
A grande crítica que se pode fazer em relação encadernado está na queda de ritmo das histórias. O primeiro arco, Sortudo, é excelente. Começa, se desenvolve e termina muito bem. Trabalhando o aspecto humano de Barton, guarda um bom número de surpresas para o leitor. Já o segundo, A Fita, começa muito bem, com uma investigação particular do protagonista. Porém, no decorrer da história, temos o envolvimento da Shield e de alguns vilões mais conhecidos. Nesse momento, a trama se torna genérica e acaba com soluções simplistas, prejudicando a qualidade da narrativa. Além disso, nesse segundo arco, Aja é substituído por Javier Pulido. Embora competente, os desenhos de Pulido não têm a mesma personalidade dos de Aja, e a associação da queda da narrativa com desenhos mais comuns acabam tornando o próprio encerramento da HQ frívolo e entediante. Isso sem contar a história que fecha o encadernado, que embora sirva para apresentar a relação de Barton e Kate – e de levar a assinatura de Alan Davis e do próprio Fraction – é uma narrativa boba e comum. Muito em parte por estar inserida na saga Reinado Sombrio e -como não cansamos de dizer aqui – estas mega-sagas são mais enfadonhas do que qualquer outra coisa, mas também não há nenhum grande esforço por parte dos autores, principalmente se compararmos com o primeiro arco.
A Marvel, assim com sua “contraparte”, tem muito mais errado do que acertado nos últimos tempos. A exceção são histórias como essas do Gavião Arqueiro. Só podemos esperar que o sucesso de crítica de arcos como Minha Vida como uma Arma estimule essas grandes editoras a explorarem mais as possibilidades que seus personagens oferecem e também o talento dos artistas em seus plantéis – que sabemos que não ser pouco. Não investir em mais séries como esta, além de insistir nessas enormes e pífias mega-sagas, só nos demonstra ignorância, incompetência, falta de visão/criatividade, ou todas juntas. Se as editoras querem de fato mudar, como dizem, que mudem para melhor com séries como essa.
Será um acerto como as flechadas do Gavião: na mosca!