Obra simplista trata bem de tema que não é simples – representatividade LGBT
A representatividade LGBT ainda é um problema não apenas nas HQ’s, mas em praticamente todos os setores da sociedade. Infelizmente, ainda vivemos em um tempo em que apresentar-se como alguém com uma identidade de gênero ou orientação sexual distinta do padrão heterossexual cisgênero impõe imediatas dificuldades e restrições para o indivíduo em questão – admita-se isso ou não. Primitivo e inaceitável.
Como indivíduo, sendo um inexorável defensor das liberdades individuais, essa questão genuinamente me irrita. Não porque a considero desnecessária, mas porque a considero desnecessária. Permita-me explicar a redundância – nós não deveríamos viver mais em um mundo onde ainda se questiona se as decisões relativas à intimidade de um indivíduo pertencem ou não a esfera do Estado ou da sociedade. A resposta é simplesmente “não”, e esse debate deveria estar relegado a lata de lixo da história. Quem esse indivíduo decide amar ou se relacionar com não interessa a mais ninguém a não ser ele próprio. É uma obviedade que mesmo a mais simplória das mentes deveria já ter assimilado.
Por esses motivos, O Enterro das Minhas Ex deveria ser uma leitura dispensável. A HQ de Anne Charlotte-Gautier não é nenhum primor em termos de execução técnica – ao contrário, uma leitura rápida pode dar a impressão de que o álbum é demasiadamente cartunesco, ao ponto de ser feito às pressas, e o formato episódico da narrativa, com histórias aparentemente pueris, faz o amigo leitor se questionar se não valeria a pena usar o seu precioso tempo com outra coisa.
Formada na Escola de Artes Decorativas de Strasbourg, Anne Charlotte-Gautier trabalha como ilustradora para a imprensa e também para livros de literatura infanto-juvenil. Em paralelo, ela mantém diversos projetos autorais, de quadrinhos e de ilustração. Seus trabalhos foram publicados pelas editoras francesas Misma, 6 pieds sous terre e Delcourt; entretanto, só O Enterro das Minhas Ex foi publicado até agora no Brasil, pela Nemo.
Gautier faz parte de uma geração recente de artistas gráficos europeus que usam a linguagem das HQ’s para construir narrativas intimistas mais vívidas. Um exemplo pode ser visto na nossa resenha sobre Placas Tectônicas, de Margaux Motin. Esses autores dão razão à expressão “novela gráfica”, se utilizando do espaço metafísico e metalinguístico da nona arte para criar uma conexão sui generis com os leitores/espectadores. Nesse aspecto, O Exterro das Minhas Ex também sofre – mesmo dentro desse subgênero, a obra de Gautier está abaixo da média, com um desenvolvimento gráfico e narrativo que beira o frugal.
Relevante intrinsecamente ao seu tema
Mas o ponto de inflexão aqui é justamente seu tema: Gautier conta a história de seus relacionamentos. Homossexuais. E aqui nossa perspectiva sobre a obra acaba necessariamente alterada. Porque o álbum gira em torno do despertar da sexualidade de Gautier e do desenvolvimento dos seus relacionamentos em uma sociedade que ainda lida primitivamente com o tema. E o que era um álbum frugal e abaixo da média imediatamente se torna relevante.
Porque representatividade importa, sim. Para um homem nas condições deste colunista por exemplo, é fácil e simples encontrar vasta representação em praticamente todas as formas de arte e pensamento. Para uma mulher homossexual, não é. E se arte vive, em parte, do seu potencial catalizador de debates relevantes, e como elemento de união entre pessoas que se identificam com um determinado personagem e/ou uma determinada obra pelos temas que ela apresenta – ou representa – então O Enterro das Minhas Ex tem sim, relevância e importância para o público a quem fala.
Principalmente, pela maneira como fala. A progressão dos eventos da vida de Gautier, narrada sobre esse confuso e complexo microverso de nossas vidas que é a passagem da pré-adolescência até a vida adulta, é feita com sutileza. É salutar observar que, apesar de os desenhos de Gautier não serem, como dito, nenhum primor, isso de certa maneira acaba servindo a trama, pois é raro, ainda hoje, a representação gráfica de um relacionamento lésbico sem a erotização das formas femininas ou a extrema sexualização das circunstâncias em que os relaciomentos são mostrados.
Nesse aspecto, o amigo leitor certamente irá lembrar de uma obra como Azul é a Cor Mais Quente. E permitam a este colunista dizer, mas nesse aspecto específico, a obra de Gautier – por frívola que possa parecer – se sobressai a de Julie Maroh. Temos plena consciência da distinção temática e narrativa entre obras, amigo leitor. Não é uma comparação direta e total. Mas é um fato que a representação do despertar sexual de Adèle é muito mais intenso e graficamente representado do que o de Gautier. O que implica que – novamente, nesse aspecto específico – a obra de Maroh tem um potencial fetichista, principalmente para o público masculino, imenso. Basta relembrarmos a polêmica adaptação da longa cena de sexo na versão cinematográfica.
Sutileza necessária compensa falta de arrojo técnico
Isso não existe em O Enterro das Minhas Ex. A progressão dos eventos, e a maneira como eles são representados, falam muito mais à angústia de leitores e leitoras que passaram pelo mesmo tipo de processo de descoberta, frustração individual e opressão social devido aos patéticos preconceitos ainda enraizados em nós, do que a qualquer fetichismo lésbico masculino. Gautier trabalha sua própria história com sutileza porque, em sua sensibilidade, ela entende que mais do que os atos sexuais em si – beijos, masturbação e o próprio sexo – o que realmente é relevante no despertar sexual de um indivíduo é como isso colabora para definir quem ele é e qual é o seu lugar no mundo.
Incidentalmente, essa parece ser a própria razão de ser do título. Ao relembrar seus relacionamentos prévios, e representa-los como o que ele realmente foram e o que eles realmente significam, Gautier aparentemente “expurga” esses demônios de si, e, ao “enterrar” suas ex, ela pode passar pelo seu processo de “luto” de sua vida e indecisões prévias, e seguir em frente com a certeza de quem – e o que – ela é.
Por ser curto – apenas 160 páginas – a obra acaba sendo uma leitura agradável para o amigo leitor casual. Como repetido aqui diversas vezes, se não existe identificação direta com o tema tratado, poder-se-ia pensar que ela é boba. Mas não é. Para o conservador mais inflexível, a dura maneira como o preconceito é representado pode lhe chamar a atenção e despertar até algum repúdio. Ótimo. Que este entenda que sua postura não tem mais lugar em mundo civilizado. Para os mais progressistas, a obra pode parecer frugal e pueril. Foi o erro que este colunista quase cometeu.
Temos que tomar cuidado. Às vezes, obras como essa não falam diretamente a nós – não significam que elas não possuam seu valor. Representatividade é um problema – sua necessidade é tão gritante quanto sua aplicabilidade é elusiva. Muitas vezes, excessos acontecem – não cansamos de ressaltar a bobagem que foi Corra! recentemente nos cinemas, por apostar – errônea e gravemente – em uma pseudocrítica social sobre o racismo. Mas isso não significa que o objetivo maior – a igualdade entre seres humanos distintos – não deva ser, sempre, nosso foco moral e de evolução.
Pequenas peças como O Enterro de Minhas Ex oferecem esse espaço de identificação no mundo para quem ainda precisa dele. Cabe a mim, e àqueles como eu¸ conhecer também meu lugar no mundo – pensando na beleza da liberdade de existir em alteridade.