Franceses reinventaram o clássico com Elric: O Trono de Rubi
Se você acompanha o Formiga Elétrica há algum tempo, já deve saber da nossa admiração pelo grande Michael Moorcock. Talvez o mais produtivo autor do segmento fantasia/ficção científica, o britânico tem uma bibliografia difícil de organizar, mas sua criação mais conhecida é, de fato, Elric de Melniboné *. Surgido em 1961, o personagem ganhou, alguns anos depois, sua primeira versão em quadrinhos, pelo mítico Phillipe Druillet. Foram inúmeras as adaptações em HQ posteriores das aventuras do albino, nos mais diversos estilos. Elric: O Trono de Rubi (Elric: Le Trône de Rubis) se propõe a uma releitura com mais liberdade.
*(Confira as resenhas do Livro 1 e Livro 2. Também assista ao nosso vídeo sobre Elric)
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As últimas palavras do parágrafo anterior podem trazer alguma desconfiança. Antes de comentar o que isso significa exatamente, é bom citar que o prefácio do álbum é escrito por ninguém menos que Moorcock, o pai da matéria em pessoa. Com uma surpreendente humildade, ele afirma que o trabalho é muito fiel na essência, mas acrescentando sutilezas de uma forma que ele mesmo gostaria de ter imaginado para sua criação.
A iniciativa de recontar a cronologia do personagem foi ousada. A Mythos optou por lançar aqui os dois primeiros tomos desta saga em um volume único. Lançados na França em 2013 e 2014, pela Glénat, depois traduzido para o inglês pela Titan Comics, os dois álbuns escritos por Julien Blondel, com colaboração de Jean-Luc Cano precisavam mostrar a que vieram. Destacar-se em meio a tantas HQ’s ótimas, e sem uma história original, foi um desafio e tanto.
Rapidamente contextualizando, Elric é o imperador de Melniboné, uma potência milenar que já vislumbra seu ocaso. Ainda que seja um feiticeiro poderoso, ele padece por ser albino e fraco, o que faz com que muitos desconfiem se está à altura do posto, condição piorada pelo seu gosto pelo estudo e ponderação. O antagonismo direto nesta corte vem de Yyrkoon, seu primo e segundo na linha de sucessão ao trono.
A primeira grande sacada em Elric: O Trono de Rubi é a forma como Blondel e o desenhista Didier Poli idealizaram Melniboné, a Ilha do Dragão. Mesmo quem já conhece os livros ficará maravilhado em como o hedonismo extremamente cruel da aristocracia deste povo é retratado. A decadência é sentida em um nível quase subliminar, já que, apesar da opulência e do poderio militar evidente, o comportamento é auto-destrutivo sem que eles mesmos percebam. Exceto o próprio Elric.
O leitor versado em Hellraiser perceberá de cara a inspiração no sadomasoquismo surreal de Clive Barker, algo confirmado pela própria equipe criativa. Uma influência que não se resume a acessórios de couro ou ao visual geral. O Caos, lado da dualidade cósmica abraçado pelos melniboneanos, encontra uma representação sob medida nesta nova versão.
Além desta característica particular, há o detalhismo e o contraste entre o povo de Elric e os bárbaros invasores. O traço de Poli, depois substituído por Julien Telo, dá conta desta complexidade visual de um jeito muito solto e fluido, bem acompanhado da arte-final de Robin Becht e as cores de Jean Bastide.
A arte, incluindo aí a narrativa visual, traz uma movimentação fantástica para a história. É inevitável que qualquer leitor compare os estilos narrativos de regiões diferentes. Se você já tentou esse maravilhoso exercício de comparar os europeus com os norte-americanos, perceberá que Elric: O Trono de Rubi conseguiu casar as preocupações com o dinamismo narrativo, presentes nos EUA, com a excelência textual mais típica do Velho Mundo. Mas aí você poderia perguntar se esse deslumbramento não seria menor para quem já conhece os livros, certo? Já respondo.
Estamos falando de um roteiro que reconta o livro Elric de Melniboné (cuja edição da Generale trouxe como subtítulo A Traição ao Imperador). Tem surpresas para quem já o leu? Sim, e elas não decepcionam. Não é uma questão de simplesmente fugir do texto original, mas, como já dissemos que o próprio Moorcock observou, Blondel procura expandir as camadas de algumas situações e personagens.
O que mudou em relação ao livro? (SEM SPOILERS)
Yyrkoon, por exemplo, nos foi apresentado na literatura como alguém sedento por poder, uma motivação eficiente, e ciumento. Sem precisar de muito mais do que isso, assimilamos esse personagem como uma espécie de mistura de Lady Macbeth com Iago. Já funcionava, mas Blondel opta por incrementar isso. Sem forçar com alguma explicação ou justificativa, o personagem vai pelo mesmo caminho, mas pequenas reações, atitudes e diálogos nos proporcionam a oportunidade de vê-lo de outra forma.
Cymoril, irmã de Yyrkoon e o amor de Elric, é alçada a um papel muito mais ativo aqui. Ela também é uma melniboneana, trazendo consigo a distorcida moral ancestral daquele povo, sem qualquer questionamento, o que a torna muito menos angelical do que nos livros. Até o próprio relacionamento com Elric ganha outros contornos, mesmo com o evidente amor entre os dois. Talvez seja a maior liberdade tomada em relação ao texto original.
Claro que não poderíamos deixar de falar do próprio imperador albino. Elric continua reconhecível a todos que já o conheciam dos livros ou de outras HQ’s – porém, alguns pontos chamam atenção nesta caracterização. O Lobo Branco parece aqui menos incomodado com os costumes de seu povo, apesar da queda iminente. Nos livros, a fraqueza e o consequente maior peso da sua condição de líder somavam-se a uma reflexão amarga sobre aquela sociedade e a necessidade de mudar.
Novamente usando Shakespeare como referência, o original trouxe um eco sutil de Hamlet, percebendo que havia algo de podre no reino da Dinamarca. No roteiro de Julien Blondel, antes do verdadeiro chamado à ação, seu drama é mais ligado à sua fraqueza e dependência de Cymoril. Apesar das atitudes bárbaras em diversos momentos, Elric não deixa de pensar sobre o que há por trás de determinadas ações. Um monarca filósofo, como Marco Aurélio, atormentado por circunstâncias que não controla ou compreende.
Fechando o arco no tomo 2 e deixando um ar de fim de primeira temporada, existe apenas um minúsculo detalhe mal encaixado nesta história em seus instantes finais. Repassando os eventos da primeira aventura de Elric, a diretriz óbvia de Blondel foi evitar mudar o destino de personagens importantes. O problema é que a reformulação, mesmo interessante, de algumas motivações criou uma incoerência nas últimas decisões do protagonista. E nem se trata de um detalhe que será percebido apenas por iniciados, mas uma falha lógica mesmo. Pena, mas é um pequeno arranhão neste belo conjunto.
Para quem conhece bem os quadrinhos da Marvel, uma forma simples de descrever Elric: O Trono de Rubi seria dizer que é um tipo de Ultimate Elric. Não que o personagem precisasse de uma atualização, e essa nem deve ter sido a motivação de Blondel e sua equipe, mas boas releituras sempre são bem vindas. Ainda mais quando chanceladas pelo próprio criador.
Só estimulando a curiosidade geral, o tomo 3 já saiu na França…