Elektra Vive e a jornada de seu criador
Frank Miller é uma contradição ambulante, como cantava Kris Kristofferson. Referência como artista autoral entre os anos 1980 e a década seguinte, mesmo dentro da indústria, hoje é uma caricatura adorada por alguns fãs em estado de negação. Seja lá por qual motivo o cara perdeu a mão, não apaga sua contribuição enorme aos quadrinhos. Ainda assim, é curioso perceber que, mesmo entre as obras memoráveis que produziu, Elektra Vive (Elektra Lives Again), álbum lançado nos EUA em 1990, é tão pouco comentada. Quase sempre esquecida, na verdade.
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A procura dos leitores brasileiros pela edição que a Abril lançou por aqui um ano depois, na série Graphic Album, já pode acabar. Relançado há pouco pela Panini, em capa dura e mantendo o formato diferenciado original (32 x 24,8), esse belo trabalho de Miller agora pode ser conferido em uma edição que valoriza o conteúdo.
É necessário um rápido retrospecto sobre a carreira do roteirista/desenhista. Após a consagração em trabalhos na Marvel e na DC, com a passagem pelo título mensal do Demolidor, Ronin, O Cavaleiro Das Trevas, Batman – Ano Um (os dois comentados neste vídeo), Elektra Assassina e A Queda de Murdock, o foco mudou com o sucesso. Quando as discussões em torno da propriedade intelectual das criações ganhou força, Miller abraçou a causa com outros artistas.
O resultado foi a mudança para a Dark Horse e a criação de Sin City, série que também marcou essa trajetória. Elektra Vive serve como uma espécie de fechamento da primeira fase de sua carreira, anunciando a transição para o novo rumo. Claro que isso perderia o sentido depois, principalmente com as continuações de O Cavaleiro Das Trevas, mas vamos nos concentrar nas qualidades da obra em questão.
Ritual de passagem
O roteiro é absolutamente simples em sua sinopse. Ambientado antes dos eventos de A Queda de Murdock, mostra um Matt Murdock lidando com a dor da morte de Elektra. O próprio título já nos diz que ela não está realmente morta, o que nos leva ao plano do Tentáculo, que envolve a completa e definitiva destruição da ninja. Basicamente, é isso. Se fosse uma história solta de outro autor, realmente não teria razão de existir, mas há vários fatores a considerar.
É curiosa essa opção de Miller ao utilizar a personagem que ele mesmo criou, e matou, despedindo-se (parecia, naquela época) deste mundo dos super-heróis uniformizados. A impressão é que, intencionalmente, ele procurou fechar uma elipse criativa, já que seu primeiro grande trabalho foi sua passagem pelo Demolidor. Só que o que vemos aqui está bem longe de uma história tradicional do herói cego. O próprio uniforme quase não aparece, além do clima sensivelmente diferente.
Existe uma clara transição no estilo da arte. Elektra Vive é um elo de ligação entre o Frank Miller da década de 1980 e o da seguinte, a partir de Sin City. Vários elementos gráficos que ficariam reconhecíveis no universo noir da cidade do pecado já estavam ali. O traço dos personagens se distanciava ainda mais do padrão da indústria, algo que, como critério particular, desagrada alguns na mesma proporção em que atrai outros.
Narrativa visual e cor são as grandes estrelas
Se o traço dos personagens pode gerar algum tipo de discordância, os cenários receberam uma atenção especial e merecem o comentário. São fundamentais para a credibilidade da história, com um detalhamento raro da parte do autor. Isso e a habilidade na condução da história são motivos mais que suficientes para ter o álbum na estante.
Investindo pesado na melancolia de Matt Murdock, Miller entregou uma narrativa visual extremamente eficiente nesta proposta sombria. As páginas compostas apenas por closes servem à dor e solidão que o personagem precisa passar ao leitor, intercaladas com painéis com ângulos ousados, que muitos cineastas dariam um olho para conseguir emular.
A destreza de outrora como contador de histórias é incontestável. Coroando esse esforço, Lynn Varley faz a melhor colorização de sua carreira, conferindo mais sofisticação e contribuindo com o clima. Os tons que ela usa, seja para evidenciar o frio em planos abertos na neve, ou o peso do interior da casa do protagonista, são dignos de estudo pelos fotógrafos do cinema.
É mais um ponto que distancia Elektra Vive das HQ’s de super-heróis em geral, mesmo entre as badaladas graphic novels que a Marvel vinha lançando naquela época. Tão notável que acabou publicada sob o selo Epic, destinado a trabalhos mais adequados ao público adulto.
A volta dos que não foram
Se você é fã da Marvel, já sabe como funcionam as mortes neste universo. Bucky Barnes, Gwen Stacy e outros já nos mostraram como isso não pode ser levado a sério, o que talvez já cause uma certa resistência a esse trabalho, caso você ainda não o tenha lido. Sim, Frank Miller trouxe a ninja de volta, é verdade, mas apenas para encerrar de vez sua saga. O que a editora fez com ela nos anos seguintes não é culpa dele.
É exatamente por isso que o roteiro tem uma importância relativa aqui. A própria ameaça criada pelo Tentáculo soa bem pueril e preguiçosa, reciclando (ou revivendo) situações. Não sei se Miller comentou algo sobre essas opções, mas também passa a impressão de que ele tinha algum arrependimento sobre o encerramento de sua passagem no Demolidor. Se for isso, Elektra Vive pode ser encarado como o verdadeiro final daquela saga. Mesmo assim, vai de cada leitor considerar isso na continuidade.
Elektra Vive é um registro de uma época melhor da indústria
Não é simples nostalgia ou saudosismo. O álbum da Panini serve para lembrar de um tempo em que a indústria ainda ousava, assim como revela esse trabalho de Frank Miller para um público mais amplo, mas tem qualidades artísticas independente disso. Méritos que se sustentam além do histórico profissional do autor, cujo conhecimento só acrescenta à experiência.
Se o conteúdo está longe de ser brilhante, a forma é primorosa. Apenas passar os olhos por suas páginas já é um prazer imenso. Já é um triunfo enorme para qualquer quadrinhista.