Doutor Estranho: Shamballa é um belíssimo ponto fora da curva na continuidade de Stephen Strange. Após sua estreia e primeira década de aventuras, que incluiu algumas histórias extremamente inovadoras e criativas sob a tutela de nomes como Stan Lee, Steve Ditko e Steve Englehart, o Doutor Estranho ficou relativamente esquecido dentro do universo Marvel. Por não ser um super-herói exatamente padrão, a verdade é que era difícil conseguir equipes criativas que realmente entendessem o personagem e soubessem dar a ele desafios à altura de suas qualidades. Assim, o Mago Supremo foi condenado a um oblívio de séries irregulares e participações pontuais em eventos que envolviam todos os personagens da casa. Muito pouco para um personagem dessa envergadura.
Para nossa imensa felicidade, eventuais exceções aconteceram e, como dissemos, Shamballa é uma delas. Parte de um projeto chamado Marvel Comics Graphic Novels, esse volume era parte de uma proposta da Casa das Ideias para acompanhar a mudança dos tempos na época em que foi lançada, 1986 – HQ’s mais adultas, com propostas mais aprofundadas, para um público mais exigente, que assistia à revolução na nona arte provocada pela invasão britânica de autores como Moore, Gaiman e Morrison. E só isso, amigo leitor, já deve lhe servir como primeiro parâmetro para essa obra – ela é absolutamente não-ortodoxa, completamente fora e alheia a ideia de uma HQ de super-herói. Cabe lembrar que antes desta bela edição em capa dura da Panini, a editora Abril a publicou em sua série Graphic Novel, no distante ano de 1989.
A história não proporciona sequer a oportunidade de Strange mostrar seu lado de super-herói; ao menos, como dissemos, não de maneira ortodoxa. O Mago, ao visitar o antigo templo de seu mestre, o Ancião, recebe dele um “presente” pelas mãos de Hamir, o Eremita. Esse “presente” contém uma escolha proporcionada a Estranho, vindo dos Lordes da Era Dourada de Shamballa. Mas essa escolha, obviamente, implicará em uma renúncia, e não uma frívola – para trazer toda humanidade a uma era gloriosa de prosperidade como jamais visto anteriormente, Strange deve conscientemente sacrificar dois terços da espécie. Ou seja, para erradicar a fome, pragas, guerras e demais desgraças apocalípticas da memória da nossa espécie, o Doutor Estranho precisa erradicar uma parte da própria humanidade.
J. M. DeMatteis e Dan Green, compreendendo o aspecto transcendental da figura do Mago Supremo em sua plenitude, constroem uma história de qualidades inefáveis, que flui como arte e narrativa pelo álbum com o mesmo desapego com que Strange navega pelos planos astrais. Característica da HQ oitentista, os autores desconstroem o espaço rígido imposto pelo quadro, tornando as próprias imagens parte da narrativa – conforme Deus (Will Eisner) assim gostaria que fosse em todo exemplar da nona arte. Abrindo mão de diálogos e verborragia que poderiam tomar espaço da bela arte de Green, DeMatteis desenvolve uma narrativa que pende constantemente sobre símbolos que conduzem a história – justificando a tese de que os autores realmente compreendem a essência do personagem. Um verdadeiro exercício de estudo dos quadrinhos enquanto forma de arte.
Se pode-se fazer uma analogia, seria que Shamballa caberia facilmente dentro de um arco, por estilo e narrativa, dentro do opus maxima dos quadrinhos, Sandman. E isso, obviamente, não é pouca referência, mas também não é nenhum exagero. Principalmente se levarmos em consideração o aspecto do risco – mesmo se tratando de um conjunto de graphic novels, esse projeto da Marvel ainda era um projeto comercial, sem tanto espaço para o quadrinho autoral.
Embora esse período dos anos 1980 tenha ficado marcado na história como um período de revolução, ela não veio sem vicissitudes – os embates da editora do selo Vertigo, Karen Berger, com as mentes conservadoras e comerciais da DC são lendários no meio das HQ’s. Portanto, é de se louvar que Shamballa tenha visto a luz do dia, por sua proposta completamente não ortodoxa e, principalmente, se levarmos em consideração que a HQ com a qual comparamos Shamballa no parágrafo acima, Sandman, cujo sucesso poderia servir de aval para a HQ de DeMatteis e Green, só foi lançado um ano depois – a aventura de Stephen Strange foi publicada originalmente em 86, enquanto a releitura do Senhor dos Sonhos feita por Neil Gaiman só veio em 87. Mais um pioneirismo esquecido do velho Doutor.
Mas isso é absolutamente irrelevante diante do que é a obra em si. As pinturas aquareladas de Green – notadamente quando se abrem em belíssimas splash pages – dão um vasto campo de imersão para o leitor se deleitar com os construtos oníricos pincelados pelo artista. Talvez algum leitor mais crítico possa dizer que elas se espalham com alguma aleatoriedade, como se não houvesse muito propósito da própria narrativa.
Eu refuto essa tese apontando as qualidades do quadrinho para além de uma construção narrativa estritamente pictográfica. Sendo uma forma de arte que abarca muitas qualidades – não apenas uma narrativa, que tornaria um quadrinho uma forma de arte derivada, ou mesmo submissa à literatura – uma HQ pode privilegiar um dos seus aspectos constituintes em detrimento de outros – da mesma forma que, analogamente, um filme pode não necessariamente ter uma continuidade regular, mas ser, antes de tudo, uma experiência audiovisual – sem que isso diminua em nada seu potencial artístico e imersivo, como é o caso de Shamballa.
De fato, não é uma HQ que permite fácil acessibilidade para o amigo leitor e seu conteúdo também não faz por menos. Conforme vemos o bom Doutor avançando em seus desafios, assim também o quadrinho se torna mais desafiador para o leitor, com indagações, questionamentos e postulados se amontoando e se perdendo por entre os planos etéreos que perpassam a aventura. A aventura brinca com o leitor, tornando-o um espectador intermitente de algo que ele talvez não esteja compreendendo absolutamente – em determinados momentos, pontos geográficos conhecidos do nosso mundo, que nos ancoram em uma potencial “realidade” da história subitamente somem, dando lugar a coisas transcendentais e planos infinitos. Tal qual a lótus que simboliza o universo místico do oriente, Shamballa é uma aventura que desabrocha aos poucos em meio ao caos antes de revelar sua completa beleza.
Shamballa é um item necessário para os admiradores dos quadrinhos enquanto forma de arte. Talvez, de maneira até mesmo pueril – pois a dupla nunca mais realizou nada parecido com essa obra – DeMatteis e Green exploraram uma faceta da nona arte que deveria servir de estudo para todos aqueles que a admiram ou que queiram se enveredar por ela. Se existe alguma crítica que se possa fazer ao volume é que ele é… curto demais. Quando a viagem começa a ficar realmente muito interessante, ela se encerra.
Mas talvez seja melhor assim. Os planos místicos de Shamballa devem ser expostos a nós, meros mortais, apenas em vislumbres. Mas que nós queríamos mais, isso com certeza.