Uma tarefa impossível para qualquer historiador seria descobrir quem foi o primeiro indivíduo a desenvolver uma compulsão de cometer vários assassinatos, através de um código pessoal e ritualístico. Seja qual for a explicação para a maldade e suas manifestações, ninguém é tão ingênuo a ponto de achar que isso é um fenômeno relativamente recente, sendo bastante lógico considerar que logo nos primórdios das sociedades já havia pessoas com necessidades patológicas deste tipo. Isso, evidentemente, significa que Jack, o Estripador não foi o primeiro serial killer do planeta Terra, apenas o primeiro categorizado assim. O que faz dele um caso especial são as circunstâncias do momento histórico em que ele surgiu e desapareceu, uma relação de causa e efeito que faz deste famoso matador o indivíduo que deu a luz ao Século XX… Segundo Alan Moore, pelo menos.
Moore é uma personalidade que dispensa apresentações para quem acompanha HQ’s. Protagonista da invasão dos roteiristas britânicos na DC durante a década de 1980, culminando na criação do selo adulto Vertigo, ele mostrou que o lado mais comercial da nona arte também tem espaço para roteiros mais profundos. Escritor iconoclasta, virou do avesso a percepção das pessoas com relação aos super-heróis – com Miracleman e Watchmen – sem o menor pudor em desconstruir o mito. Em 1988, após brigas e com sua antipatia pelo mercado dos comics já escancarada, esse inglês de Northampton se viu em meio à comoção do centenário dos assassinatos de Whitechapel, onde o maníaco conhecido como Jack retalhou cinco prostitutas antes de desaparecer e entrar para a História. Com tantas teorias conspiratórias conhecidas ao longo de um século, correndo entre o bizarro e o pouco provável, além de tantas obras ficcionais já abordando o tema, o roteirista achou que valia a pena explorar esse fenômeno.
Contando com o artista Eddie Campbell, pouco conhecido dos leitores brasileiros, com algumas participações na série Hellblazer publicadas por aqui, Do Inferno (From Hell) foi batizado utilizando as primeiras palavras de uma carta real enviada à polícia, a qual se supõe de autoria do verdadeiro assassino. Publicado de 1989 a 1996, na revista inglesa de antologias Taboo, ganhou um encadernado em 1999 e teve uma versão editada nos EUA pela Top Shelf. A proposta nunca foi apresentar uma versão definitiva para o caso, desvendando a identidade do matador confirmando alguma teoria ou bolando outra. Ao invés disso, Moore embrenhou-se em uma exaustiva pesquisa entre tudo que havia publicado sobre o caso, criando sua ficção baseada na teoria sensacionalista proposta por Stephen Knight, em Jack the Ripper: The Final Solution, onde a motivação vinha de uma conspiração da coroa britânica para ocultar a existência de um bastardo do Príncipe Albert Victor. Ordenado pela própria Rainha Vitória, o médico real William Gull elimina as cinco mulheres envolvidas na chantagem, fazendo da tarefa um ritual maçom por sua própria conta. Um detalhe relevante é que isso não é uma revelação dramática na história, pois somos apresentados ao assassino logo no início, diferente da inútil adaptação para o cinema, com Johnny Depp, onde a intenção era criar um suspense com final surpresa.
O resultado é que mesmo, claramente, não acreditando nesta conspiração da Rainha, o roteirista dá uma prova cabal do que ele mesmo declarou no documentário The Mindscape of Alan Moore:
“Em meu trabalho como autor eu trafego na ficção, mas não trafego em mentiras…”
Embora ele mesmo admita que a distinção entre as duas é complicada, o que percebemos em Do Inferno é que a extensão da pesquisa realizada, auxiliada ocasionalmente por Eddie Campbell e outros amigos, criou um peso de realidade assustador. Fundamentando tudo com os mapas da época e depoimentos registrados do inquérito, entre toneladas de fontes e invenções com propósitos narrativos, o roteiro passeia entre a fantasia e a vida real – envolvendo até mesmo conceitos temporais presentes em Watchmen – confundindo e mesclando as duas para mostrar que Jack, o Estripador está muito além de ser “apenas” um criminoso não-capturado que deu origem ao conceito de assassino em série. Jack se tornou o precursor e o espírito de um século seguinte marcado pelo anti-semitismo, misoginia, sensacionalismo e outros horrores bem conhecidos. Um legado deste porte não fica restrito às suas associações mais diretas, e estendeu sua influência até às artes e o ocultismo, conforme verificamos nas presenças famosas da vida real que passeiam por esse cenário, além dos anônimos que estiveram envolvidos em maior ou menor grau. O grande incômodo é que nós mesmos abraçamos esse monstro, cuja presença ainda é sensivelmente perceptível, e é sobre isso que Do Inferno trata.
Sobre a arte, não seria exagero colocar o trabalho de Eddie Campbell ao lado da prosa de Jack London em O Povo do Abismo (The People of The Abyss), na questão de retratar as condições de vida no East End londrino. O artista consegue transmitir as péssimas condições daquelas pessoas vivendo em um mundo paralelo dentro do Império Britânico, com traços rústicos e sujos de bico de pena, contrastando com cenas mais bem acabadas quando a narrativa assim exige. Nada é por acaso quando um desenhista trabalha com Alan Moore, cujas descrições de um único quadrinho podem conter mais de uma lauda, e uma arte sem pretensão nenhuma de parecer agradável, diagramada sem grandes arroubos narrativos, pode causar um estranhamento e, sob um primeiro olhar, dar impressão de uma experiência entediante. A verdade é que existem artistas na indústria dos comics que fazem páginas lindas com o propósito de comercializar os originais após a devolução da editora, mas isso está bem distante do compromisso de trabalhar única e exclusivamente a favor da história, uma tarefa que Campbell desempenhou de forma soberba. O mundo de Do Inferno é imundo, desagradável e violento, tudo perfeitamente capturado em sua representação gráfica.
Com um texto com várias camadas de percepção, embora paradoxalmente tenha uma linha narrativa simples, a complexidade denota mais uma vez um interesse do autor por fractais. É mais do que oportuno que a edição da HQ traga em seus apêndices todas as explicações de Moore para os rumos escolhidos e caracterizações, página por página, item por item. A leitura deles não é obrigatória para o entendimento da história, mas expande significativamente a experiência e dá ao leitor a oportunidade de saciar uma vontade comum, conhecendo não apenas o processo criativo de uma obra de peso, mas também dando um passeio pela mente criadora. A quantidade de informação é tamanha que vale a pena – na verdade, é o mais lógico – ler as anotações intercalando os capítulos.
Do Inferno pode interessar pelo retrato histórico, para que tenhamos uma ideia melhor das disparidades sociais do fim do século XIX, em meio a um Império Britânico já em seu ocaso. Nos outros quesitos, não explica nada… Propõe. Já ficou claro que não é uma proposta agradável, mas nem por isso menos tentadora. ” Quem é Jack, o Estripador?” não importa mais há muito tempo. A verdadeira indagação proposta é “O que ele é?”, e Alan Moore e Eddie Campbell não deram a resposta definitiva, nem poderiam…
O resto é conosco!