Mesmo sem familiaridade com a literatura de Chandler ou Hammett, o arquétipo que eles ajudaram a consolidar é reconhecível para a maioria das pessoas. O tipo durão, charmoso, malandro, que pensa rápido e tem uma ética rígida, ainda que peculiar, logo vem à cabeça quando pensamos em detetives particulares, embora algumas exceções nesta construção sejam encontradas na própria era de ouro do romance policial, como o obeso Nero Wolfe, de Rex Stout. De qualquer forma, todos eles partilham de uma inteligência rara e de um alto índice de resolução de casos. Subvertendo essa imagem em todos os detalhes possíveis, os quadrinhos brasileiros tem a figura de Diomedes.
O detetive é uma criação de Lourenço Mutarelli, que assina roteiro e arte da Trilogia do Acidente, composta por O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto e A Soma de Tudo, publicados entre 1999 e 2002 pela Devir e encadernados em uma única edição pelo selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras, em 2012. Personagem que poderia figurar em uma galeria dos maiores fracassados das HQ’s, Diomedes é um policial aposentado que se vira como investigador particular. “Se virar” é um eufemismo para passar o tempo em uma vida miserável, já que ele nunca resolveu um caso, está em péssimas condições físicas e financeiras e sua esposa o trai com o técnico que conserta a televisão. Alguém pode arriscar a piada pronta sobre o personagem ser brasileiro, mas o intuito do autor vai além de uma simples paródia.
Em O Dobro de Cinco, Diomedes é procurado por alguém que deseja encontrar um mágico que não é visto há tempos, Enigmo. Com a promessa de um bom pagamento, essa parece uma chance de, finalmente, comprar o sonhado sofá de três lugares para sua esposa, mas – como sempre – as coisas não ocorrem como ele esperava. A primeira parte da trilogia já nos mostra quão estranho e melancólico é o mundo do simplório Diomedes, com imagens surreais e uma sequência um tanto perturbadora em um circo abandonado. A primeira parte da trilogia parece procurar um contato deliberado com a psique do leitor, o que, aliás, é mais uma subversão do gênero, criando um clima bem incomum para uma história detetivesca.
Os desdobramentos do caso de Enigmo colocam nosso protagonista, agora em situação pior, à mercê de um policial corrupto atrás de uma oportunidade de promoção. Esse é o evento que inicia O Rei do Ponto, com reviravoltas mais características do gênero policial, porém sem abandonar o ar de absurdo que permeia a obra. Diomedes é obrigado a colaborar em um caso envolvendo casais envenenados e mitridatismo, prática de ingerir pequenas doses de veneno para adquirir imunidade. A inclusão do simpático personagem Waldir, que servirá como interlocutor do azarado detetive, acrescenta algo à dinâmica da história, sem quebrar o ritmo.
A Soma de Tudo é maior que os anteriores, talvez ironizando o próprio título. É o capítulo mais verborrágico, e por isso irregular, do conjunto. A trama toma contornos (mais) inesperados e interessantes, levando o personagem principal a viajar para Portugal, no que parecia um simples caso de localizar um marido desaparecido, mas revela-se uma história que envolve a história secreta de Lisboa. O problema é que existe um grupo que fará de tudo para que ela continue secreta, dando um viés esotérico e conspiratório ao terceiro ato da saga de Diomedes, que ainda se encontra às voltas com o mágico Enigmo. Além disso, a metalinguagem transborda das páginas que homenageiam diversas personalidades reais e personagens dos quadrinhos – os mais atentos perceberão que a maior criação das HQ’s belgas aparece aqui e ali pela trilogia toda.
A ideia do quadrinho de autor defendida por Will Eisner, em que roteiro e arte deveriam ser sempre feitos pela mesma pessoa, ganha força quando se entra em contato com o trabalho de Lourenço Mutarelli. As situações bizarras que ele concebeu em texto encontram o correspondente visual perfeito em seu traço estilizado, criando figuras rústicas e compondo cenas que, às vezes, lembram gravuras. Esse peso da arte está em completa harmonia com uma história que não prima por redenções, situações-padrão ou saídas fáceis, mas seu criador ainda soube dosar o ritmo da narrativa tradicional e a diagramação, evitando páginas poluídas e cansativas. São mais de quatrocentas páginas que passam muito rapidamente.
Incomum, curiosa e instigante, A Trilogia do Acidente é uma daquelas obras que ficam conosco após seu término, pedindo uma reflexão mais profunda e uma conversa com outra pessoa que também a tenha lido. Na essência, chega a parecer algo elaborado para um filme dos Irmãos Coen. Difícil definir os reais objetivos de Mutarelli apenas lendo a HQ, mas, no mínimo, ele criou algo que não deixa seu público indiferente, o que já é muito significativo. Na jornada de Diomedes, o que mais vier é lucro.
Falando em Lourenço Mutarelli, AQUI tem uma palestra dele em vídeo!
Uma pequena curiosidade para finalizar. O Dobro de Cinco quase ganhou um longa no cinema e teve um trecho filmado em 2007 para apresentação a possíveis investidores. Infelizmente, o projeto não foi adiante, mas confira abaixo o ator Cacá Carvalho como Diomedes e a participação do próprio Lourenço Mutarelli.