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Desconstruindo Una – Desconstruindo a misoginia!

Desconstruindo Una oferece um retrato visceral e intimista do patriarcado e da cultura do estupro

Tendo em mente que seria um tema espinhoso, decidi fazer algo que normalmente não faço: dar uma olhada em outras opiniões relacionadas ao tema do estupro em Desconstruindo Una, da editora Nemo, antes de escrever minhas próprias opiniões sobre a obra.

desconstruindo una

Me deparei com a primeira barreira: salvo uma ou outra exceção, a colossal maioria dos textos sobre a graphic novel foi escrita por mulheres. Pois óbvio que sim, já que ela trata de um dos temas mais sensíveis a existência do gênero feminino como um todo, o estupro, e que o coloca em rota direta de colisão com, literalmente, metade da população da Terra. Metade a qual eu pertenço.

Diante dessa tarefa hercúlea a qual eu me propus, decidi manter minha humildade e aceitar que esse é um tema sobre o qual eu poderia ter a objetividade, mas não a sensibilidade necessária para tratar dele. Assim, consultei minha queridíssima amiga Bianca Zasso, colaboradora do Formiga e estudiosa de assuntos feministas sobre como deveria abordar a questão.

A resposta que obtive foi: “escreve pensando que uma mulher vai ler. Seja sincero com o que a obra te passou, mas deixa claro que tu entende que a visão dela é fruto do patriarcado, do que a sociedade construiu como sendo um homem. Mas que nem todos são iguais”.

Guardemos essa citação. Retornaremos a ela, pois ela trata de uma questão emblemática.

Como já dissemos, Desconstruindo Una trata de um tema específico, denso e, infelizmente, brutalmente atual em qualquer época da história humana, desde o seu início: o estupro. A autora, que se identifica apenas como Una, expõe a questão por duas frentes aparentemente distintas: sua experiência particular de crescimento enquanto mulher em uma cidade do interior da Inglaterra; e os ataques, contemporâneos a essa época de sua vida, de um estuprador e assassino serial que ficou conhecido com Estripador de Yorkshire.

A escolha pelo formato de uma autêntica graphic novel torna a leitura ainda mais dolorida. Una, como muitos artistas europeus recentes, como Margaux Motin, encontrou no modelo da narrativa gráfica uma maneira de tornar sua história – e a razão de ser dela – ainda mais contundentes e vívidos.

Usando o espaço em branco dos quadrinhos para engendrar na sua história uma visão artística – mas não completamente abstrata – da progressão dos eventos de sua vida, e a angústia que a acompanha, Una cria uma obra inalienável, que fala aos seus leitores de uma maneira perturbadoramente íntima.

Nesse aspecto, reside uma das dicotomias que tornam a obra de um brilhantismo único. Devido a densidade do tema, uma narrativa crua, apenas descritiva, poderia perturbar o amigo leitor ao ponto de afastá-lo da obra – ou mesmo, de não encontrar uma conexão com este.

Mas os desenhos, assim como a diagramação aberta e os painéis mais contemplativos, permitem ao leitor imergir em Desconstruindo Uma – ou mesmo, em alguns pontos, nos permitir recuperar o fôlego diante do que estamos vendo. Como se, em determinados momentos, a autora permitisse que entrássemos ali para segurar sua mão, ou apenas sentar ao seu lado para lhe fazer companhia, e diminuir a dor que suas memórias lhe evocam.

Eu peço perdão ao amigo leitor se minha resenha parece por demais pouco específica, mas entenda que não estamos tratando aqui de uma obra que possui narrativa linear, ou uma progressão específica de eventos.

Trata-se de uma obra de denúncia em que, muito a exemplo de Autocracia, a autora usa, ao mesmo tempo, muito como um veículo para conscientizar quem lê de um problema gravíssimo que ainda afeta praticamente todos os locais do mundo, mas também como uma maneira de expiar a dor de suas memórias, em uma imensa terapia coletiva com seus leitores.

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Problema gravíssimo esse cuja principal característica é, justamente, ser ignorado. Uma embasa sua narrativa, além das suas experiências pessoais, em diversos dados, estatísticas e até mesmo montagens fotográficas que demonstram o comportamento da sociedade inglesa do período em relação ao símbolo maior da temática da sua narrativa, o tal Estripador de Yorkshire.

O cenário é aterrador. E, mais importante, é um círculo que vai progressivamente se fechando em torno dos leitores masculinos. Porque existem algumas verdades que são inalienáveis, e com as quais nós precisamos, racionalmente, lidar.

A crueldade sutil do patriarcalismo

Nós vivemos em um mundo patriarcal. Ponto. Existe uma diferença objetiva entre isso, e falácias tais como o “falocentrismo”; muito usado por extremistas femistas para desqualificar o gênero masculino como um todo – claro ato de preconceito; ou por aqueles que buscam desqualificar o feminismo, exagerando seus argumentos, para mais facilmente ataca-los – outra clássica falácia.

Aceitar que nós vivemos em um mundo patriarcal, argumento usado por Una, é um ponto legítimo, que encontra evidências concretas na realidade. Uma dessas realidades brutais é um dos porquês da dimensão que o caso do Estripador de Yorkshire tomou. Essa figura macabra não era um super-vilão maniqueísta escondido nas sombras, pronto para atacar mulheres inocentes, puras e virgens. Esse tipo de vilão nós só encontramos – ironia das ironias – em outras histórias em quadrinhos.

Não. Tratava-se – veja só – de um pai de família. Uma pessoa acima de qualquer suspeita, de nome e residência conhecida. Alguém que os apóstatas voluntários das ciências sociológicas – e, basicamente, da realidade do mundo – gostam de chamar de “cidadão de bem”, este pináculo de moralidade egresso da classe média, cujos únicos sonhos e intenções só poderiam ser constituir sua bela família, trabalhar duro e ganhar seu justo dinheirinho no final do mês para sustenta-la.

Pois bem, Peter Sutcliffe era um pai de família, “cidadão de bem”, que contribuía para a sociedade. Até que decidiu atacar mais de 30 mulheres, matando 13 delas em um período que durou de 1975 até 1980. A nuance aqui não está em um pretenso conflito de classe, onde estaríamos estabelecendo uma espécie de prova contra o fato de que apenas homens pobres cometem crimes – uma obviedade brutalmente simples de se refutar.

A nuance está em estabelecer uma verdade cruel – de um ponto de vista objetivo, estatístico e amoral, virtualmente todo homem tem potencial para ser um estuprador. E se não se configura como um estuprador, estatisticamente ainda é mais provável que se encaixe em um perfil que, ativamente ou por omissão, corrobora com a cultura do estupro.

Eu tive problemas em escrever essa última sentença – um dos reflexos que me fizeram ficar profundamente incomodados com Desconstruindo Una. Afinal, como homem, eu estou em algum lugar dessas estatísticas. Una, no posfácio de sua obra, oferece dados contundentes sobre o estupro em sua terra natal, a Inglaterra. E, como a honestidade intelectual deve prevalecer, decidi ir atrás de alguns dados sobre a questão no Brasil. O que eu encontrei – claro – não é menos do que assustador.

Uma das razões pelas quais o Estripador de Yorkshire permaneceu tanto tempo ativo sem ser capturado foi o fato de que – uma das consequências da combinação de patriarcado com a cultura do estupro – a polícia simplesmente não ouvia suas vítimas.

Pois, como todo bom sociopata, o Estripador deixava pistas para a polícia, para testa-la e jogar com ela, em uma brincadeira doentia. Assim, sua estratégia consistia de estuprar e matar prostitutas e “apenas” estuprar moças “de bem”. O que talvez Sutcliffe soubesse – e se sabia, estava correto – é que a cultura do estupro e o patriarcado impõe duas severas realidades às mulheres.

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Primeiro, uma mulher sexualmente livre não pode, “teoricamente”, ser estuprada. Afinal, em uma mente masculina desorientada, se uma mulher declara publicamente gostar de sexo, ela deve necessariamente querer fazer a todo instante, indiscriminadamente.

Segundo: existe uma relativização da moralidade das vítimas de estupro. É um fato que a imensa maioria dos homens, segundo estatísticas, considera o estupro um crime inalienável. O problema não está na atitude em relação ao crime em si, mas sim, em relação as vítimas dele – algo que a obra deixa dolorosamente claro.

Pois bem, nas estatísticas que eu busquei sobre o tema no Brasil – que são incomodamente similares às apresentadas por Una, indicando uma certa homogeneidade na questão – uma delas foi essa aqui:

  • 26% dos entrevistados pelo Ipea em pesquisa feita em 2013 e divulgada em 2014 concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. No entanto, 58,5% concordam total ou parcialmente com a afirmação que “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros.

Entenderam esses dados? Não? Pois bem, aqui vai o contexto: 1 em cada 4 homens no Brasil afirmaria que as prostitutas mereceram ser atacadas, pois eram prostitutas. Da mesma forma, 6 em cada 10 homens no Brasil responsabilizam o próprio comportamento das mulheres pelo estupro. É uma brutalidade que revela não apenas uma absoluta falta de sensibilidade com as vítimas, mas também incapacidade de relacionar questões morais e éticas a estatísticas incontestáveis.

Não que Una precisa de qualquer crítico como eu para entender essa realidade. Ela, de fato, não precisa sequer dos dados relacionados na sua terra natal. Pois como o leitor já entendeu a essa altura, a própria autora foi sexualmente abusada. Ela conheceu as consequências de uma sociedade patriarcal na pele.

Quando compreendemos que Una está estabelecendo um paralelo entre o Estripador e sua própria história – algo bela e aflitivamente bem representado pela arte da autora – somos levados a crer que ela foi mais uma vítima do Estripador. Foi interessante refletir porque eu cheguei a essa conclusão. Talvez o fato de que ela tenha sido uma das vítimas de um único criminoso, de uma maneira perturbadora, represente algum tipo de catarse – afinal, é somente um criminoso perturbado da qual ela teve a infelicidade de ser vítima.

Pois bem, minha mente pretensamente racional estúpida logo teve um choque de realidade. Una não foi uma das trinta mulheres. Ela foi estuprada por outros homens. No fim da infância e início da adolescência. Em duas das três circunstâncias, por um amigo e um namorado.

Se o amigo leitor não teve a curiosidade de clicar no link acima, sobre os dados relacionados a estupro no Brasil, permita-me mostrar algo dessas mesmas fontes:

  • Dados do Sinan mostram que 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. O indivíduo desconhecido passa a configurar paulatinamente como principal autor do estupro à medida que a idade da vítima aumenta. Na fase adulta, este responde por 60,5% dos casos.
  • Em geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares.
  • O mesmo levantamento, feito com base nos dados do Sinan, mostra que 70% das vítimas são crianças e adolescentes.

Repito, esses dados correspondem a pesquisas feitas no Brasil entre 2013 e 2014. Os casos descritos por Una, assim como sua própria história, ocorrem do outro lado do Atlântico, 40 anos atrás.

Não são coincidências perturbadoras. São dados que explicitam a tal cultura do estupro e o patriarcado aos quais Una se refere através de toda a obra – corroborando sua incômoda tese, a qual estamos chegando.

Realidade e aceitação

Uma das perguntas que um amigo leitor ainda mais resistente pode fazer é: porque a autora realiza uma denúncia dessas na forma de uma obra de arte? Não obstante, por que o Estripador não foi capturado. Por motivos análogos, relacionados ao machismo e patriarcalismo.

Tanto Una como as sobreviventes do Estripador simplesmente não foram ouvidas. Quando os dados finalmente foram reunidos, percebeu-se que o tal Estripador apresentava dois modus operandi distintos – um para prostitutas, um para mulheres aleatórias. Entretanto, diversos retratos falados foram feitos, mas a polícia – majoritariamente masculina no período – preferiu buscar pistas indiretas que levassem ao assassino, como escrita, mensagens de voz, impressões digitais. Mas não o rosto descrito pelas mulheres atacadas.

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É sério.

Da mesma forma, um dos aspectos mais angustiantes da obra é a maneira como a autora descreve a repressão de seus sentimentos após os ataques, e a tenebrosa reação das pessoas nas poucas vezes em que tentou falar sobre o assunto. Afinal, no mundo patriarcal, a vergonha e o constrangimento de lidar com uma criança abusada são maiores do que a responsabilização do perpetrador.

E é claro que, para Una, isso teve consequências maiores, como uma sexualidade difusa e conhecidas reações emocionais à abusos, como surtos de depressão e agressividade. A descrição que a autora usa para os momentos em que foi abusada é tão bela quanto é cruel: ela se sentia “desfragmentar”. Como alguém que não sabe mais quem é. Que não se sente em casa em seu próprio corpo. Alguém que não é vista, nem ouvida. Por que Una decidiu contar sua história numa graphic novel? Porque assim existe ao menos uma chance que alguém lhe ouça.

Mas é claro que esses sentimentos latentes provocam, quando uma adulta que decide confrontar essa parte de seu passado, consequências que tornam a obra, embora em pequena parte, defensora de uma tese incômoda – a tese a qual dissemos que íamos chegar. Lembram-se da citação da minha querida amiga Bianca? Pois bem, é aqui que ela se encaixa.

Próximo do fim da obra, Una estabelece que a cultura é essencialmente um problema de gênero – ou seja, de algo que é inerente à cultura masculina – por extensão (que ela não afirma, mas não refuta), à todos os homens. Nesse momento, veio a reação emocional de minha parte: como homem, estava sendo formalmente acusado pela autora de ser um potencial estuprador.

Obviamente, não é uma reação racional. E claro, jamais cometi ou cometerei tal crime. Ao contrário de outros homens menos esclarecidos (perdão pela falta de modéstia) eu tenho plena consciência da minha reação à acusação de Una: como indivíduo, sou e sempre serei um defensor inexorável das liberdades individuais, e da isonomia ética da justiça. Não tenho nenhum tipo de tolerância a qualquer forma de opressão ou preconceito, e jamais vi argumento que refutasse conceito da presunção da inocência de um indivíduo antes de um julgamento.

Assim, não consegui deixar de observar tal acusação generalista como um aspecto negativo – que talvez até mesmo invalidasse o que a obra havia realizado enquanto forma de denúncia até ali. Quando levei esse questionamento e consternação para minha querida amiga, o que ela pediu foi que eu “pensasse como uma mulher”. É aqui que a ficha cai, e a tese de Una se sustenta.

Eu não sei “pensar como uma mulher”. Porque, como homem, eu não sei o que é viver com medo. Eu não sei o que é olhar sobre o ombro quando estou andando sozinho a noite. Não sei o que é ir a uma festa, e ter que medir minhas ações com medo do que isso possa significar para o membro do outro gênero ao meu lado. Não sei o que é ter que reprimir meus desejos para não ser moralmente assediado com rótulos cruéis como “vadia”.

O motivo pelo qual eu não compreendi a tese defendida por Una – a de que o estupro é uma questão de cultura de gênero – é o mesmo motivo pelos quais os policiais que cuidaram do caso do Estripador não ouviram suas vítimas: nós não conhecemos essa realidade. E essa perspectiva me deixou profundamente perturbado.

Simples assim. Não é simplesmente um caso de falta de empatia, ou incapacidade de alteridade. É que, para homens como eu, essa é – em tese – uma realidade tão distante, que jamais seríamos capazes de aceitar que tal forma de medo existe. E, pior, que perpetradores desse medo podem ser meus irmãos, amigos, colegas de trabalho – ou mesmo, um dos caros leitores.

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Pior ainda, como homem – e eu devo aceitar os piores momentos de meu comportamento e pensamento – eu muito provavelmente, mesmo que não intencionalmente, corroborei e ajudei a perpetuar, de alguma forma, o patriarcado. Como disse anteriormente, a perspectiva que essa reflexão me ofereceu é profundamente perturbadora – a ideia de que eu, que me esforço para ser uma força positiva nesse mundo, possa estar sendo assim, na verdade, para apenas metade do mundo.

Bianca me consolou ao afirmar categoricamente que “nem todos são iguais”. Uma obviedade, sim, mas que me serviu de alento após chegar às conclusões que Desconstruindo Una me ofereceram. E se o amigo leitor tiver qualquer intenção de ser intelectualmente honesto e – mais importante – tiver qualquer intenção de ser empático às necessidades e aflições do gênero feminino, este dará mais atenção e será mais aberto às mensagens de Una desde o ínicio; ao menos, mais do que eu tenho que admitir que dei.

Una que, incidentalmente, escolheu esse pseudônimo como uma forma de representar todas as mulheres “em uma”. Desconstruiu a si mesma para que pudesse representar todas.

Talvez eu devesse desconstruir a mim mesmo, antes de tentar desconstruir outro argumento.

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