HQ celebra a história do samba, desde seus primórdios esquecidos, até grandes nomes como Noel Rosa e Ismael Silva
Quando Couro de Gato, HQ de Carlos Patati e João Sánchez, lançada esse ano pela Veneta, caiu em minhas mãos, um sentimento curioso me surgiu. Curioso, mas não inédito. O quadrinho conta um recorte dos primórdios da história do samba, do Rio de Janeiro da virada do século retrasado – e, por consequência, da história do nosso país e nossa cultura. Voltaremos ao meu “sentimento” em breve.
Couro de Gato é um primor, em todos os sentidos. É uma obra que exala brasilidade em todos os seus aspectos. Não apenas pelo tema em si, mas pelos detalhes que a compõem. Carlos Patati, o roteirista, realizou uma intensa pesquisa, e usou todo o tempo possível para construir o roteiro. Isso faria o amigo leitor inferir que sua estrutura narrativa é intrincada, complexa e sofisticada. Mas Patati sabiamente compreende que a história da cultura brasileira não é a história da alta cultura e da sofisticação acadêmica.
É a história de seu povo e de seu cotidiano. Uma perspectiva veyniana, se o amigo leitor assim preferir. Patati transforma o que poderia ser uma estrutura expositiva, indireta e estéril da história do samba em uma fábula, uma cantiga – uma ladainha, para fazer jus à cultura afro-descendente celebrada na obra. Essa ladainha é extensa, tomando todo o período da proclamação da República até Getúlio, quando o samba já havia se consolidado como uma parte indissociável da cultura nacional.
O protagonista da trama é Camunguelo, que, embora seja livremente baseado em um homem real, segundo o próprio autor no prefácio da HQ, é alguém que transcende a vida de um único indivíduo. Camunguelo são nossos olhos nesse período fervilhante de transformações culturais, políticas e históricas. É o Deu Ex Machina violeiro, sempre no lugar certo, na hora certa, que usa o samba como o Verbo para nos transmitir o conhecimento da criação do samba e das artes afro-brasileiras.
Ele é a encarnação do bom malandro, o autodidata das ruas, aquele que serve e a quem serve a música. Camunguelo é todos os negros – arriscaria dizer, não apenas daquele tempo, mas de certa forma, até hoje também. Através dos sambas clássicos cantados por Camunguelo na HQ, e por causa deles, compreendemos a dura, mas rica história de um povo escravizado, segregado e abandonado, que sem nunca desistir, acabou se tornando a fundação de uma nação que ainda hoje os despreza e marginaliza.
A história do samba é a história do Brasil
São três momentos dispostos na narrativa que pontuam a obra: primeiro, os primórdios do samba, na Praça Onze do Rio, quando a música ainda era clandestina em público. Ali, vemos as origens humildes de um estilo criado pelo povo, e que a ele pertence, e que só podia ser executada longe dos ouvidos das figuras de autoridade – pois já naquele período, estas exibiam suas tendências autoritárias que ainda persistem.
Não obstante, ainda sobre tristes elementos da nossa cultura que perduram, somos sutilmente explicados sobre a situação dos negros alforriados, que lutaram em Canudos e na Revolta dos Malês, dois importantes eventos desse período, que receberam a promessa – nunca cumprida, claro – de lar e trabalho em troca do seu sangue. Ler Couro de Gato torna impossível não imaginar que o século XIX é agora.
Um segundo momento, já dentro da República das Oligarquias, a primeiro patética etapa da nossa “democracia”, mostra como a cidade do Rio de Janeiro “desceu” o morro para colonizar a baixada e as praias – onde as elites, convenientemente, não precisariam mais conviver com a população negra que agora tomava os morros e que, convenientemente, fora deixada para trás. No morro, agora restava o negro e o samba, enquanto as elites brancas iam buscam os seus sonhos de pretensão europeia à beira-mar.
Esse processo de gentrificação, entretanto, é sutilmente apresentado por Patati apenas como um elemento da trama, e esse, no geral, é um dos grandes méritos da HQ – nossos olhos são sempre os olhos de Camunguelo, alguém que não se lamenta ou se vitimiza. Ao contrário, é alguém que entende tudo o que acontece como movimentos históricos. Tudo é impermanente. Tem um começo e um fim. Como um samba. Dessa forma, a HQ consegue brilhantemente se esquivar de se apresentar como um manifesto político, ao mesmo tempo em que não se priva de tocar nas feridas necessárias.
O terceiro momento é o momento da assimilação. O samba agora é um dos produtos mais valorizados no mercado de cultura nacional. No final das contas, o samba, que em sua essência é democrático e pertence ao povo, desceu o morro para que pudesse pertencer não apenas aos negros, mas a todos. Camunguelo se tornou uma lenda a ser ciceroneada pelos novos e garbosos nomes do samba – alguns deles, brancos, veja só – como Noel Rosa, e outros como Ismael Silva. “Samba é feito passarinho. Está no ar, é de quem pegar”. Assim foi feito, e todos estavam pegando, como o samba pegou no Brasil.
Nesse terceiro momento, é curioso notar como Camunguelo é mais mencionado que mostrado – um simbolismo de Patati para o fato de o samba, uma tradição essencialmente oral e informal, aos poucos ter sua origem histórica misturada ao mito. É muito menos importante saber quem e porquê criou o samba do que mante-lo vivo e se reinventando. Não existem represálias ou reprimendas pelo fato de o samba agora não ser mais exclusivo da cultura afro-brasileira – apenas uma nota melancólica por uma era que se encerra, e que se perderia nas brumas do tempo.
A fluidez dessa narrativa na forma de uma parábola folclórica ganha uma força tremenda pela escolha do estilo artístico. Se a narrativa celebra a história do samba, e é um sumo da trajetória da nossa cultura, a arte não poderia se distanciar dessa proposta – e que arte magnífica!
Tirando o chapéu para João Sánchez
O artista plástico João Sánchez cria um processo de transição da arte que emula a transição no tom da narrativa. A nota curiosa fica pelo fato de que Sánchez afirma, em uma entrevista, que sua escolha pela mudança no estilo artístico também se deve em muito a necessidade. Tanto ótimo. Por vezes, a necessidade se alinha a criatividade, e belas obras como a arte de Couro de Gato vem à vida.
O primeiro ato é adornado com belas e intrincadas xilogravuras, que dão a história um ar rústico, pitoresco, tipicamente popular brasileiro. A influência dos estilos de Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo são gritantes, e contribuem para que Couro de Gato seja uma obra indistintamente brasileira sobre as origens de uma de suas artes mais queridas. Assim, nada mais justo do que usar dois artistas indistintamente brasileiros para tal tarefa.
Mas Sánchez, não contente em se utilizar e homenagear esses dois grandes artistas, decide estender ainda mais a qualidade de seu trabalho para além da xilogravura – muito pela necessidade, como dito, pois xilogravura é um estilo demorado e minucioso. Um tanto incompatível com as necessidades de uma HQ, que exige muitas artes com um mesmo padrão.
Assim, o artista decide buscar outras fontes para enriquecer essas, trazendo para a HQ notas e traços oriundos dos trabalhos de Portinari e Di Cavalcanti. Couro de Gato é uma obra que deveria constar imediatamente na grade curricular de qualquer escola de arte brasileira. Aliás, retifico – qualquer escola brasileira. Ponto.
Ao final desse trabalho, temos uma nítida sensação de pertencimento, como se mesmo alguém como eu, que nunca foi especialista na história do samba ou mesmo da cultura popular brasileira, estivesse em casa, assustadoramente familiarizado com tudo – e com a maneira – como Camunguelo e seus coadjuvantes nos contam essa história. E de certa, até observando pela minha história particular, isso não deixa de ser verdade.
Breve posfácio, assinado em crus, puque num sei escrevê
Lembram-se do início do texto, quando mencionei meu sentimento curioso? Pois bem, tal qual Camunguelo, agora conto do meu ponto de vista – como todos bem sabem, no início do século passado, o samba não apenas desceu do morro do Rio, mas também subiu a serra em direção a São Paulo. Aqui, ele encontrou ninguém menos do que meu avô. Mas só depois de mais velho, eu fui conhecer a história de como ele pertenceu a um grupo de samba que competiu no rádio com ninguém menos – acreditem ou não – que os Demônios da Garoa.
Segundo ele mesmo, durou pouco, pois diz ele que não tinha muito talento para coisa – o que eu vim a descobrir que era um fato – assim como seu pai, meu bisavô, não queria que ele se distraísse do ofício de marceneiro, já que samba era coisa de “vagabundo” – algo que nunca pude confirmar, pois não conheci meu bisavô. Os Demônios da Garoa seguiram, e o resto é história.
A nota curiosa desse breve e irrelevante história particular é que, quando vim a saber dela, eu estava no auge da minha adoração pelo heavy metal – e claro que, como qualquer adolescente descabeçado e panaca, escolhi também o samba como uma forma de música “vulgar” (não me julguem, todos fomos babacas de alguma forma na adolescência, e vocês sabem disso).
Depois de descobrir que o samba estava quase que literalmente no meu DNA, me resignei, e passei a pedir para meu então professor de música me ensinar algumas coisas de samba para tocar no baixo elétrico. E me tornei substancialmente menos babaca ao perceber que Adoniran Barbosa, um dos ídolos de meu avô, estava de fato em uma mesma prateleira em que Eric Clapton.
Pois todos nós, aqui, somos brasileiros, e – como vim a descobrir – todos nós somos um pouco de samba. Se permitem, agora vou celebrar minha herança, ouvindo pela milésima vez a trolada de Arnesto sobre Adoniran.
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