Adentrar o Coração das Trevas pode ser fácil no início, mas à medida que nos aprofundamos em seus meandros, logo nos sentimos imersos em sua atmosfera, de onde a loucura pode tomar conta de nossa frágil humanidade. A obra de Joseph Conrad foi publicada em 1902, sendo que em 1899 ela já havia saído em uma revista, dividida em 3 partes. É um clássico da literatura inglesa e cânone literário mundial, fartamente estudada e discutida através de seu viés psicológico e sua abordagem colonialista. O romance narra a história de Marlow, um navegador que recebe, à princípio, a missão de transportar uma carga de marfim, todavia sua missão acaba se transformando no resgate de um mercador de marfim, o Sr. Kurtz, que é fartamente elogiado por todos, mas está doente e a companhia de exploração de marfim teme perder um funcionário tão ilustre e eficaz. A obra se tornou mais conhecida por ter sido adaptada para um novo contexto no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola. O romance foi escrito com base na própria vivência do autor, que navegou pelo Rio Congo anos antes de escrever seu livro e sua denúncia contribuiu para gerar um movimento de protesto e indignação que culminou no Estado Livre do Congo e a diminuição das atrocidades.
A HQ, editada aqui no Brasil pela editora Veneta, é uma adaptação deste romance, que preza pela fidelidade à história original, todavia adicionando – através da arte – uma leitura particular e profunda do universo do autor sem o didatismo exagerado, por vezes comum em adaptações literárias. O mérito se deve – sobretudo – ao premiado escritor e dramaturgo David Mairowitz, que também assina o texto da adaptação de O Processo, de Franz Kafka, também editado pela Veneta.
A obra provoca uma discussão sobre a civilização e a barbárie, mais os limites da nossa noção de humanidade. Durante sua saga, o navegador Marlow se depara com uma realidade terrível promovida pelo homem branco, sendo traduzida pela fome, morte e exploração dos nativos na selva do Congo, seguido pelo descaso daqueles ditos civilizados. Um mundo onde, aos poucos, a civilidade dá lugar à loucura e ao caos, em um mundo onde o marfim vale mais que a dignidade humana. A leitura é aparentemente fácil e fluida, no entanto, a história possui grande profundidade moral e psicológica.
Tal barbárie promovida pelo rei belga Leopoldo II, aliás, foi infelizmente bem maior daquela que a HQ consegue nos contar, apesar de estar em seu contexto. Tomando o Congo como se fosse uma grande propriedade particular, o rei promoveu em larga escala a caça do elefante e exploração do marfim, com consequências ecológicas que permeiam os dias atuais, além da escravidão, mutilações, sequestro de crianças, estupros coletivos e genocídio, de tal forma que hoje podemos comparar esse momento histórico a outros igualmente inadmissíveis – como o nazismo, por exemplo – exterminando em torno de dez milhões de congoleses ao final do período exploratório, o que corresponde a quase metade da população nativa.
Permeando sua busca, o personagem recebe relatos cada vez mais elogiosos e efusivos de Kurtz, um chefe de um posto de exploração, reconhecido por todos por sua cultura erudita e sua eficiência na extração de marfim, retratando um personagem bastante carismático e popular, com carisma tal para inclusive manipular os nativos a seu favor. Embora admirado por todos, não passa de mais uma peça desse sistema, sendo que instrui claramente a “matar todos os selvagens” como forma de suprimir os costumes do povo local e levar a dita “civilização” ao Congo.
No início da HQ, há uma página contando um preâmbulo da história e levando a discussão sobre o racismo e as noções de humanidade presentes na obra. Muitos estudiosos afirmam que Conrad desumaniza os africanos, enquanto outros relevam a ideologia colonial da época, algo que é usado para explicar um comportamento, mas que de forma alguma o autoriza ou legitima. Em variados momentos, o protagonista trata os nativos de forma puramente instrumental e chega a questionar a humanidade dos nativos. Observando a fala do protagonista: “Sou grato a estes canibais — quando estão em seu devido lugar. Homens com os quais posso trabalhar. A suspeita de que não sejam inumanos me vem lentamente. O que me inquieta é pensar nessa… humanidade ”, vemos um questionamento se o nativo é um humano ou um animal e em outro momento, ao ver o timoneiro do seu navio morrer, ele, logo após se lamentar, justifica que ele era útil tal qual uma engrenagem em um mecanismo. Minha impressão, como leitor, é a de que Marlow tem consciência da humanidade dos congoleses, todavia ao ver tamanha crueldade, pensar neles como seres humanos, e não como animais ou coisas, o incomoda ao ponto de ele afirmar para si mesmo essa não-humanidade.
O traço de Catherine Anyango, do Royal College of Arts de Londres, preza por passar um universo mágico de horror e loucura, manipulando o seu traço e suas linhas a serviço de impactar o leitor e inseri-lo neste universo. Uma pena que muito dessa qualidade e impacto é perdida na impressão em tom amarronzado que prejudica em muito a nitidez da arte. O balão translúcido das falas dos personagens também causa certa estranheza de início assim como o letreiramento nos balões. A obra é impressa em papel encorpado e em capa dura, o que confere uma qualidade incrível à mais uma edição de qualidade da editora.
A obra-prima de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now (1979), adaptou o romance para a guerra no Vietnã sob o mesmo objetivo de denunciar uma barbárie contra o ser humano. O filme trabalha os mesmos conceitos, todavia com grande liberdade artística, produzindo um trabalho original e provocativo em sintonia com sua época. A observação no filme de que no meio da palavra life (vida) há a palavra if (se) é uma observação instigante, pois nos conduz a enxergar uma condicional intrínseca dentro da vida, determinando que a vida só possa ocorrer SE houver determinadas condições. Observação bastante pertinente.
Ao fim, Kurtz é um louco lúcido, que se dá conta da barbárie do mundo à sua volta. O resultado disso é o horror, grande o bastante para não ser ignorado e admitido por aqueles que o vivenciam, ocupando os corações tomados pelas trevas de uma pseudo civilidade, sendo esta a verdadeira selvageria. Infelizmente, embora em menor escala, a caça de elefantes e exploração do marfim continua até os dias de hoje e movimenta poderes paralelos e milícias, que continuam explorando populações inocentes. Soma-se a isso uma vergonhosa mentalidade que insiste em considerar seres humanos inferiores, baseados em sua cultura ou tom de pele. Declarações como a do ex-ministro de relações exteriores belga, Louis Michel, que em 2010 declarou que considerava Leopoldo II um “Visionário que levou a civilização ao Congo” apenas mostram que – infelizmente – o horror visto por Kurtz está muito mais presente do que muitas vezes imaginamos.