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O Chinês Americano – A fábula da discriminação!

O Chinês Americano acaba por ser uma fábula atemporal de um mundo cada vez mais globalizado

Aristóteles já dizia que o “ser humano é um animal social”. “Social”, veja, não “sociável”. O que significa que nossa tendência natural é nos agruparmos em torno daqueles que conseguimos “reconhecer” – com quem conseguimos nos identificar. Quando éramos apenas alguns milhares, espalhados nos primórdios da civilização, isso já era meio problemático. Desde então, o bom e velho lero-lero de “nós e eles” já causava problemas. E por “problemas”, eu quero dizer segregação e violência. O que dirá então hoje, que somos bilhões espalhados por milhares de etnias? Todo mundo que não tem a cabeça enfiada na terra sabe que, muito infelizmente, xenofobia, racismo e preconceito ainda são problemas recorrentes em muitos lugares que se afirmar civilizados. E esse é o mote de O Chinês Americano, de Gene Yang.

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O autor jura que a história não tem ao menos contornos auto-biográficos. Não é absurdo, pois, ao mesmo tempo em que a história poderia falar de forma metafórica sobre sua experiência crescendo como sino-americano (nascido ianque de pais chineses), ela também fala sobre as experiências de muitos sino-americanos – muito provavelmente, de todo imigrante que tenta se adaptar a um local onde existe uma cultura etno-social-política dominante. Pois, dentro da eterna e pérfida lógica de “nós e eles”, os contornos do mundo civilizado público quase nunca equivalem aos termos particulares da interação entre indivíduos de culturas distintas na esfera privada.

Para explorar o peso e a construção histórico-sociológica do preconceito estereotípico estadunidense contra os imigrantes chineses, Yang cria uma pequena fábula – evocando grandes fábulas da cultura de seus pais. A história é dividida em três linhas, aparentemente distintas: Jin Wang é um pequeno garoto chinês cujo único real desejo é ser aceito pelos seus colegas de turma na escolinha. Ele é gamado em uma menina da sala, Amelia, e a progressão das suas tentativas de se aproximar dela apresentam um recorte singelo e dramático do que é ser “o outro” em meio aos “iguais” – o que, incidental e eventualmente, o leva a reprodizir parte dos preconceitos que ele mesmo sofre. Ele compartilha suas angústias com Wei-Chen, taiwanês, e Suzy Nakamura, japonesa, grupo com o qual forma – que surpresa – os “orientais” da sala.

Em uma segunda linha, temos Danny. Danny é tudo o que Jin gostaria de ser: popular, querido, americano em seu american way of life tanto quanto alguém pode ser. Infelizmente, nem tudo são flores: Danny tem um primo, Chin-Kee, chinês, que todo ano vem visitá-lo. Danny se sente profundamente desconfortável em todas as visitas: Chin-Kee é um verdadeiro pastiche do estereótipo de chinês; falando errado, comendo de forma grotesca, chegando na mulherada das formas mais absurdas – e, claro, sendo a estrela da classe com todas as respostas na ponta da língua. As visitas de Chin-Kee são diversão garantida em um festival de comédia de vergonha alheia.

Por último, Yang retoma aquele que talvez seja o mito chinês mais famoso no Ocidente: a lenda de Sun Wukong, o macaco que buscou o poder e a perfeição para ter um lugar entre os deuses no Palácio de Jade eterno em Jornada ao Oeste. O autor, entretanto, no lugar de fazer uma apresentação tradicional e conservadora do mito, resolve usá-lo como analogia e metáfora para algumas angústias contemporâneas.

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As muitas formas do preconceito

As três histórias, como observamos acima, tem tons distintos. A história de Jin é realista, de características melancólicas e dramáticas – o preconceito e o bullying sofrido por conta de sua ascendência são apresentados de forma clara e contundente. Yang não poupa grafismo e abuso moral para demonstrar todo o peso da discriminação sobre a mente e o crescimento de uma frágil criança – que não sabe porque sofre o que sofre nas mãos de quem não entende completamente que estão fazendo sofrer; afinal, crianças raramente são mais do que o espelho de seus exemplos adultos.

No espectro diametralmente oposto, a história de Danny é cômica – de um jeito absurdo, maior-que-a-vida. Todas as trapalhadas de Chin-Kee são acompanhadas por onomatopéias que explicitamente emulam claques – como se a relação de ambos, assim como a discriminação em relação a Chin-Kee, fossem parte de uma sitcom ruim dos anos 70. Mesmo seu nome, Chin-Kee, é uma piada de mau-gosto, deliberadamente usada por Yang para demonstrar a percepção do chinês médio pelo apoteótico adolescente que alimenta o american dream: “chinky” é uma maneira bastante pejorativa de se dirigir a uma imigrante ou descendente chinês. Embora essa linha seja de um tom cômico, ela é até mais contundente do que a de Jin: o véu desse desconfortável humor faz com que os leitores mais empáticos sintam uma certa repulsa em relação ao comportamento de Danny dirigido ao seu primo.

Para entender as relações entre as duas histórias de Jin e de Danny, Yang nos dá Sun Wukong; na lenda do Rei Macaco, nós aprendemos que muito de sua angústia, assim como o sofrimento e a violência que ele acaba provocando e sofrendo são oriundos da incapacidade de compreender a si mesmo e sua própria natureza. O catártico fim da HQ equivale ao catártico fim da Jornada ao Oeste de Sun Wukong – cujos detalhes eu prefiro omitir dessa resenha. Cada uma das linhas narrativas tem seu próprio estilo estético e gráfico – como se o autor nos mostrasse diferentes facetas de um mesmo prisma narrativo.

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Aceitação e compreensão

Pois é justamente a compreensão da correlação entre as três linhas narrativas que permite ao leitor a “iluminação” – Yang constrói e apresenta contrastes culturais que se equilibram e se completam. Que diabos – não é exagero dizer que a obra se encerra com a perfeita apresentação de um yin-yang, a eterna busca pelo preenchimento de si e do outro. Porque, ao aceitar que os outros são outros, mas também são uma parte de nós, Yang consegue demonstrar habilmente que, embora o preconceito seja sim um problema a ser combatido, não deve a ele ser permitido nos destruir; ao contrário, é por causa dele que devemos valorizar ainda mais as diferenças, pois só assim as tornaremos explícitas, dando a todos os “outros” uma chance de compreende-las e aceita-las.

É realmente uma pena que esse colunista não possa entrar em maiores detalhes sobre o desenvolvimento da obra – estragaria a montagem desse delicioso e esclarecedor quebra-cabeças, ameaçando a realização que a obra oferece, que tanto comentei até aqui. O Chinês Americano é uma pequena obra-prima que pode e deve ser usados em escolas, não apenas para combater repressivamente o preconceito, mas para demonstrar de forma definitiva que aprender, compreender e aceitar diferentes formas de cultura só engrandece a todos nós.

Na sociedade brasileira, é desnecessário dizer que o preconceito está brutalmente enraizado – a cruzada do homem branco e suas subcaracterísticas, dentro das suas ilusões de poder e posse, só parecem se tornar mais intensas. O que eles não veem é que, tal qual Sun Wukong, permanecem soterrados sob uma montanha de ignorância e negação.

Quem sabe algum Chinês Brasileiro não esteja perdido por aí, pronto para ensinar uma ou duas coisas para eles – e para nós.

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