Se você quer que seu personagem seja cool, chama-lo de Casanova é um bom primeiro passo. Casanova é um nome cool, e ao mesmo tempo um tanto vintage. Afinal, nenhum maior exemplo do que o Casanova clássico, o Giacomo, mulherengo e bon vivant, o primeiro conhecido Casanova e aquele cujo nome se tornou alcunha para quem busca imitá-lo em vida. E se essa descrição inicial parece meio babaca e um tanto pretensiosa, acredite, é a pura vontade do autor Matt Fraction na composição insana desse personagem, publicado por aqui em seus três volumes pela Panini.
Fraction é mais conhecido em geral pelo seu trabalho no mainstream com a Marvel, o que pode lançar alguma dúvida sobre a qualidade de uma HQ autoral como essa. Mas justiça seja feita…O material é bom! Até porque, seu trabalho mais reconhecido na Marvel é justamente com um personagem insólito como o Gavião Arqueiro, cuja fase nas mãos dele, pasmem, foi digna não apenas de reconhecimento, mas também de prêmios, o que diz muito da habilidade do autor na hora de escrever um roteiro. Tendo toda a liberdade do mundo para escrever, já que se trata de uma história autoral, como dito anteriormente, Fraction usa e abusa dessa liberdade para brincar com o roteiro e nos entregar uma história, para dizer o mínimo, que beira uma insanidade lisérgica.
A história nos apresenta Casanova Quinn (admita, esse nome soa legal), um ladrão galante, um anti-herói sedutor e, para não fugir ao dharma de seu nome, um bom vivant, que é filho de um diretor de uma mega-agência de espionagem que trabalha em escala global, de maneira autocrática, não respondendo a nada ou ninguém (alô, S.H.I.E.L.D. ?). Uma espécie de James Bond, mas com muita ficção científica demente. Suas aventuras giram em torno de… bem, muita coisa. Não dá para resumir de forma sucinta. Isso fica muito claro quando logo no primeiro capítulo do primeiro volume, somos bombardeados com uma carga monumental de informação desconexa. Os desenhos extremamente estilizados dos irmãos brasileiros Moon e Bá potencializam ainda mais o choque inicial. O leitor mais descuidado pode achar que é desleixo, mas Fraction sabe bem o que está fazendo.
Na verdade, esse é o grande espírito da HQ. É um imenso festival de referências, jogadas no colo do leitor através um roteiro frenético acompanhado de um visual lisérgico. Algumas dessas referências são mais óbvias, outras exigem um pouco mais de esforço. A primeira delas, o nome do personagem, e o seu “modus operandi” são um tanto óbvias. Não é preciso pensar muito para entender a relação de um personagem devasso com seu nome “Casanova”, mas a graça da HQ está em coisas como o fato de um personagem com essas características, chamado Casanova, ser idêntico a Mick Jagger. E não para por aí! O grande vilão da história, embora seja difícil rotular alguém assim em uma história onde todos os personagens são no mínimo moralmente dúbios (e o protagonista não é exceção), é uma caricatura do Homem-Invisível clássico da Universal, sob o pseudônimo de Newman Xeno, um nome também apropriado, visto que ele é encontrado em uma linha temporal paralela a de Casanova. Confuso? À primeira vista sim, mas depois que acostuma-se com a história, ela flui cada vez melhor, e seus detalhes e brincadeiras vão aparecendo.
O que Fraction mais faz em Casanova é brincar com o próprio conceito de HQ e sua indústria. O alvo mais óbvio, na maior parte do tempo, é a própria editora que lhe deu nome, a Marvel. Sob o peso autoral dos desenhos de Moon e Bá, que em muitos momentos lembram trabalhos mais recentes de Mike Mignola e Peter Chung, ele engenhosamente esconde referências que fazem chacota com conceitos e personagens clássicos. Buck McShane é uma tosca paródia de Dum Dum Dugan, dos Comando Selvagem de Nick Fury. Seu trabalho é ser o braço direito do diretor da I.M.P.E.R.I.O., outra referência clara a S.H.I.E.L.D., como já citamos anteriormente. De fato, a brincadeira de Fraction com acrônimos de grupos clássicos de HQ é constante e recorrente. Basicamente, toda organização apresentada na história atende por um acrônimo besta, e alguns deles, como M.O.T.T. e S.M.X., nem significado possuem. Uma clara referência as I.M.A.s, E.S.P.A.D.A.s e S.H.I.E.L.D.s da vida. Além de outros personagens, como Fabula Berseko, que é uma representação clara de M.O.D.O.C (alguém pediu mais um acrônimo?)
Quando tudo parece bizarro e insano, nada mais parece. Nada melhor do que esconder uma folha no meio da floresta certo? Mas aqui se faz necessária uma crítica: o ritmo da HQ é intenso. Mas é tão intenso que cansa. Em determinados momentos, você fica simplesmente se perguntando o que aconteceu e/ou se foi você que perdeu alguma coisa. Como a trama vai e volta entre dimensões e em alguns momentos ela é narrada de forma não-linear, alguns elementos que ajudam na compreensão da história acabam perdidos no meio da bagunça, e isso é bastante prejudicial, visto que não são muitos os momentos em que a história dá um tempo para te explicar alguma coisa. Os desenhos dos irmãos brasileiros, embora lindos e muito bem feitos, não colaboram, pois o excesso de elementos nos quadros e a colorização gritante cumprem sua missão enquanto viagem narcótica, mas pecam na exposição da história.
Por cima, dá para entender algumas coisas, como por exemplo, a sutileza da essência da trama nos títulos dos volumes. Em Luxuria, vemos o aspecto mais físico, mais visceral de Casanova, enquanto ele explora suas características sedutoras com as voluptuosas personagens femininas da trama (nas quais incluem-se sua própria irmã). Nos volumes seguintes, Avaritia e Gula, temos essências similares,mas ainda assim, não é o bastante para evitar nos perdermos aqui e ali nas histórias.
Aparentemente, Fraction sabe disso. É nesses momentos em que ele lança mão muito bem dos recursos narrativos da HQ, fazendo com que alguns personagens quebrem a “quarta parede” da HQ e falem diretamente ao leitor, expondo seus pensamentos e nos facilitando, mesmo que não muito, a compreensão do que está acontecendo.
Casanova não apresenta nenhuma grande inovação em termos de estrutura de roteiro ou história. Tem sido muito recorrente esse conceito de desenvolver uma trama fazendo centenas de referências pop, para fazer com que o leitor se sinta “esperto”. Embora Matt Fraction use esse recurso, não está aí o grande valor dessa HQ. Este reside no dinamismo e na intensidade da trama. Se muitas vezes ela se torna cansativa, ao menos se mantém coerente na sua identidade. Não chega a ser um roteiro de cinema em forma de HQ, mal que tem acometido muitas obras autorais recentemente, mas daria um bom filme, pois Casanova se pretende apenas isso: ser divertida, intensa, emocionante, bizarra. Tal qual seu protagonista.
E afinal, quem não gostaria de caminhar um pouco ao lado de um bon vivant chamado Casanova?