Segunda parte da HQ de Manara, Caravaggio: O Perdão mantém o brilho até o final
É compreensível que algumas pessoas reclamem que a biografia em Quadrinhos do grande pintor Michelangelo Merisi de Caravaggio (1571 – 1610) tenha sido dividida em dois volumes, com 64 páginas cada. Em um contexto econômico difícil, ainda mais falando de trabalhos que precisam de refinamento em sua edição, a coisa fica um pouco pior e pode afastar uma boa parcela de leitores. Porém, agora que a Veneta lançou Caravaggio: O Perdão, está confirmado que Milo Manara (Câmera Indiscreta, Quimeras) completou mais uma obra indispensável.
Seguindo os eventos que culminaram na fuga do artista ao final de Caravaggio: A Morte da Virgem, Manara cobre os poucos anos finais desta figura fascinante e inquieta. Em direção à Nápoles e em busca de perdão pelo assassinato cometido, Michelangelo tenta obter sua redenção através de seu inigualável talento. Rumando depois para Malta, ele usa esses dotes para ingressar na Ordem de São João, cujo prestígio limparia seu nome, mas as coisas não são tão simples para alguém como ele.
O temperamento indomável continua um obstáculo. A representação de Manara para esta figura histórica é a de um personagem que faz os leitores torcerem por ele naturalmente, já que é a sua proximidade com as camadas mais baixas da sociedade que o faz reagir às injustiças. Muitas vezes impotente diante de uma arbitrariedade, o incômodo do protagonista é claro para nós, graças ao acesso a seus pensamentos, criando inimigos pelo caminho e causando uma tensão crescente pela narrativa até seu desfecho.
Em Caravaggio: O Perdão, são reforçadas as características mais ambíguas do pintor. A insistência em usar figuras do povo como modelos para obras de temas religiosos é uma peça importante nesta construção. Michelangelo, através de sua arte, criou um belíssimo casamento entre o Celestial e o Profano, uma relação que se estende ao seu próprio íntimo. Alguém com essa visão, e criticado por isso mesmo, empregado pela Igreja e desejando ardentemente um perdão perante essa mesma sociedade repleta de injustiças, mostra uma contradição que confere mais humanidade ao retrato criado por Manara.
À parte discussões sobre o talento artístico como meio de ascensão social, o álbum estimula discussões sobre a natureza da arte em si. Não apenas impressionando pelo seu personagem principal, que vive pulsante naquelas páginas, existem vários outros temas em torno dessa figura – e no interior dela – que enriquecem bastante o conjunto da obra. E é sempre bom lembrar que essa é a visão do artista sobre o pintor, e não uma tentativa de reconstituição de fatos.
Além disso, outra qualidade marcante é que não há qualquer mudança de tom em relação ao primeiro volume, algo que acontece com outros trabalhos do mercado europeu quando se produzem continuações em intervalos grandes entre um capítulo e outro. Quem quiser ler os dois em sequência, não vai sentir qualquer quebra de ritmo entre eles, pelo contrário. Incluindo aí a construção narrativa nas brilhantes composições que nos deixam mais tempo olhando para as páginas.
É preciso mesmo comentar a arte?
Estamos falando de Milo Manara, um dos maiores artistas de Quadrinhos de todos os tempos. O que mais seria possível dizer sobre seus desenhos e colorização? Em se tratando de uma obra mais recente de um autor de idade avançada, talvez apenas considerações sobre como ele mantém a excelência da juventude e suas marcas reconhecíveis. O destaque às figuras femininas e o tom de erotismo, é claro, marcam presença aqui também.
Apesar dos solavancos na vida de Michelangelo Merisi, a beleza harmoniosa e a elegância do traço e da cor tornam nossa viagem um prazer inesquecível. É simplesmente a outra metade de um casamento perfeito com o texto, algo realmente marcante e emocionante simplesmente pela sua perfeição intrínseca como obra de arte.
Se encontramos um tipo de relação fractal entre a própria vida do Caravaggio de Manara, que uniu divino e mundano em suas criações, assim manifestando traços de seus próprios conflitos internos, o quadrinista nos provoca uma sensação de arrebatamento, tal qual os admiradores de seu protagonista dentro de sua narrativa visual. Se foi intencional ou não, importa muito pouco, já que a aparente simplicidade do roteiro nos deixa livres para interpretar e sentir.
Por isso e outros vários detalhes, Caravaggio: A Morte da Virgem e Caravaggio: O Perdão entregam algo que é muito mais que uma biografia comum. Algo que só é possível, de fato, na mídia na qual foi concebido.