Dizem que quando um chinês quer amaldiçoar alguém, ele lhe deseja uma vida interessante. Uma vida interessante não é necessariamente boa ou feliz, mas essencialmente é uma vida com acontecimentos variados, reviravoltas e fatos curiosos que desperta em nós a curiosidade do conhecimento. Sem dúvida, Caravaggio deve ter sido amaldiçoado por um chinês. Artista incansável e boêmio, ficou tão conhecido pela genialidade de suas obras quanto pela violência e confusões em que se metia, justamente em uma época com tantas amarras sociais. Juntando isso ao traço magnífico de Milo Manara, temos como resultado Caravaggio – A Morte da Virgem, uma incrível biografia em quadrinhos editada no Brasil pela Editora Veneta, retratando este verdadeiro gênio italiano.
Caravaggio foi um pintor italiano que viveu na passagem do século XVI e XVII. Teve uma carreira relativamente curta, todavia, em tão pouco tempo conseguiu revolucionar a arte com seus quadros belíssimos. Para suas pinturas, em sua grande maioria sacras, ele utilizou como modelo figuras marginalizadas pela sociedade, como mendigos, meninos de rua e prostitutas, o que feria a moral da igreja, sua grande financiadora, afrontando a instituição com sua arte libertária e desafiadora. Apesar de toda a sua genialidade, tinha facilidade em arrumar brigas graças a seu temperamento genioso, sua teimosia e seu orgulho. Homem violento, andava sempre em companhia de sua faca e sua espada, arrumando confusão em prostíbulos, tavernas e ruas de Roma, motivo pelo qual foi preso por várias vezes na Tor de Nona, uma torre medieval transformada em prisão, por onde passaram também nomes como Giordano Bruno e Beatrice Cenci, citados na HQ.
O artista era mestre em uma técnica típica do renascimento chamada chiaroescuro, que se caracterizava por quadros com grande contraste onde um único foco de luz iluminava os personagens, dando um alto contraste entre luz e sombra.Também, ao contrário da grande maioria das pinturas sacras que pintavam santos e personagens bíblicos envolto em tecidos e ares de pureza, Caravaggio se preocupava em pintá-los como pessoas comuns, como se habitassem aquela mesma cidade naquela época, fazendo, de certa forma, uma aproximação entre o povo e os personagens bíblicos, ao passo que também torna esses personagens mais próximos do homem comum e mais distantes de seres idealizados.
Milo Manara assina com maestria essa obra biográfica com um texto fácil e gostoso de ler, sem contar as ilustrações belíssimas de cair o queixo. Assinando texto e arte, o artista fez uma abrangente pesquisa bibliográfica para chegar nesse resultado. A pesquisa de Manara optou por uma determinada visão da vida do pintor baseada em alguns cronistas, e abandonou outras visões conflituosas. Como resultado, o Caravaggio de Manara é um homem violento e genioso, porém leal e gentil com seus amigos e prostitutas. Sendo conhecido pela arte erótica, com a qual se popularizou, neste trabalho as figuras nuas desenhadas atuam mais como apoio para a história, e não como foco narrativo, deixando um pouco de lado o teor sexual para dar lugar ao ambiente social retratado. A nudez e o sexo estão ali apenas no que é suficiente para contar a história, nos dando a ideia daquele contexto, sendo essa retratação de muito bom gosto e sem qualquer apelação exagerada ou sem um sentido.
Essa HQ é encadernada em capa dura e colorida tanto na capa quanto nas páginas internas. O formato é grande (24 x 32 cm), embora seja relativamente fino. Essa edição é o primeiro de 2 volumes, sendo que o segundo ainda está em produção. O prefácio discute e defende que o álbum de Manara se trata de uma obra biográfica e não de um romance histórico, mas criar personagens secundários ou conferir a estes uma personalidade por si só aproxima a obra deste conceito, ainda que ela seja carregada de fatos. Embora tenha escrito no parágrafo anterior, vale a pena repetir: as ilustrações são maravilhosas! Algumas delas ocupam mais da metade da página gigante, em ambientes ricamente desenhados de variadas paisagens da Roma no período, como o interior de uma taverna, a Ponte Salario e a Tor di Nona. Também as figuras humanas tanto vestidas quanto nuas são de um detalhamento belíssimo, sem contar a reprodução dos quadros do Caravaggio dentro dos quadrinhos, que estão muito bem representados. Grande parte da história é destinada a retratar o modo de trabalho do pintor, que orientava seus modelos no estúdio de forma a gerar uma identificação com o povo e passar uma mensagem, da mesma forma que faria hoje um diretor em um estúdio atualmente. São também interessantes os aspectos sociais apresentados. A linguagem é bastante coloquial, e inclusive os palavrões proferidos pelos personagens os aproximam da realidade. As notas do editor são igualmente oportunas ao mencionar determinados fatos históricos, que nos situam no contexto da história, entretanto também são breves e em nada atrapalham a leitura. O letreiramento também é claro e bem legível, com uma tradução para o português bastante coerente.
O volume abrange desde a chegada de Caravaggio em Roma, até o assassinato do cafetão Ranuccio Tomassoni. Como fio condutor da trama, é apresentada em paralelo a relação do artista com uma prostituta que posa como modelo para o pintor. Cada quadro pintado também pontua um momento da trama, de forma que as pinturas sirvam também como recurso narrativo de forma bem inteligente. O envolvimento do protagonista com a sociedade ao seu redor e o clero também é bastante instigante, pois ao passo que confere aos populares um aspecto humanizado, traz um clero que ao mesmo tempo que admira as pinturas do artista, também se escandaliza com a nudez e a forma como o artista trabalha.
Faço um questionamento em relação a um livro tão fino ser apresentado em dois volumes, mas uma vez que o segundo volume está em produção, é compreensível. Em alguns momentos, a história também sofre cortes bruscos e um certo exagero no resumo de fatos que aceleram algo que deve ser entendido como eventos de grande duração. Também a sexualidade e a violência não aparecem em carga tão evidente, como ocorre em muitas de suas biografias, apenas centrando essas características em alguns personagens, talvez para evidenciar o caráter leal a Caravaggio e lhe conferir um status de herói.
Nenhuma das ressalvas, entretanto, é grande o suficiente para tirar o brilho desta obra incrível de Manara, e Caravaggio – A Morte da Virgem é uma HQ de altíssima qualidade, que nos encanta por ter um personagem com uma história e personalidade interessantíssimas, ao passo que é retratado por um ilustrador que é uma verdadeira referência na atualidade. Ler e admirar essa obra foi uma atividade bastante interessante e eu vou aguardar o segundo volume com grande expectativa.