Ayako é uma obra-prima dos quadrinhos
Ayako, do mangaka Osamu Tezuka, é mais do que simplesmente uma obra-prima; é um recorte da condição humana tornado papel, uma janela portátil e acessível para um passado que muitos prefeririam esquecer. Não há como fazer apresentações muito sutis sobre a peça – Tezuka, quando começou a publicar esta história, já havia muito passado pelo período de colocar panos quentes na sua arte e na sua sociedade. Ayako, antes de tudo, é o grito de guerra de um gênio contra o peso das circunstâncias que permearam sua vida. E, para entendermos isso, precisamos de contexto.
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Tezuka foi um dos responsáveis pela chamada “revolução do mangá”, fortemente influenciada pela publicação de Shin Takarajima – “Nova Ilha do Tesouro” – onde sua releitura da obra de Stevenson acabou saindo muito melhor que a encomenda. O mangaka tinha apenas 19 anos quando começou a publica-la, em 1947. Isso, por si só, já é impressionante por alguns motivos: Tezuka viveu na pele a Segunda Guerra. Ele chegou a escrever, em relatos, sobre como quase morreu durante os bombardeios finais dos americanos, quando ainda era apenas um estudante. Não obstante, como para todos os japoneses médios e das classes mais baixas, o pós-guerra foi brutal. Privações de todos os tipos, ocupação de um povo que não entendia – e se negava a entender – sua cultura, além, claro, da violência que sempre irrompe de uma sociedade política e economicamente em frangalhos.
Mas o que é de fato mais impressionante na trajetória de Tezuka são seus primeiros trabalhos. Inicialmente, o autor apresenta resistência aos chamados gekiga – mangás para adultos – pois ele vê uma certa auto-indulgência desses autores de tentarem tornar mangás algo “sério” apresentando seus temas de maneira hermética. Para ele, era importante usar o mangá como veículo para também educar e entreter as crianças, ensinando-as sobre certas questões reais como uma linguagem lúdica acessível. Por conta dessas crenças, nesse período surgem alguns dos trabalhos mais emblemáticos do autor, como Kimba, O Leão Branco, e aquele que talvez seja o personagem mais lembrado de sua galeria, Astro Boy.
Tezuka permaneceu fiel às suas crenças de forma tenaz – enquanto pôde. Embora, conceitualmente, se opusesse ao hermetismo dos gekiga, a ele eram mais caros os valores das liberdades artísticas e individuais. Isso fez com que ele ficasse cada vez mais incomodado com o cerco social e político feito pelo governo e pelos setores conservadores da população àquilo que eles entendiam como “excessos e perversões” desse nicho de mangá. Embora não fosse um militante ideológico, o mangaka possuía profundas preocupações sociais – talvez, no Japão ainda mais imperialista do pré-guerra, fosse considerado um “subversor”. Já consolidado como um dos maiores nomes dos mangás, Tezuka chegou a fundar, em 67, uma revista de mangá alternativo, a COM, para engrossar o coro liderado pela Garô, de 64, então maior representante dos gekiga e mangás alternativos.
Entretanto, o autor, que, devido às terríveis experiências de juventude, era assombrado com frequência pelos fantasmas da insegurança e da depressão. Embora seus trabalhos iniciais, como Astro Boy, fossem cheios de otimismo e dosada inocência, essas características foram sendo deixadas para trás conforme o mundo ao seu redor recrudescia. Qual foi a gota d’água é incerto dizer: Tezuka foi profundamente afetado pela guerra do Vietnã; em 67, o governo japonês cria uma espécie de departamento de censura para mangás. No campo pessoal, sua empresa de animação, a Mushi Productions, enfrenta dificuldades financeiras, obrigando-o a deixa-la. É aqui que entra Ayako.
Pessimismo arguto
Publicado entre 72-73, Ayako talvez seja a obra mais imersa no período pessimista – e, portanto, altamente crítica – do mangaka. Ela apresenta a mesma complexidade narrativa e ousadia na diagramação dos quadros, mas é, tematicamente, incomparavelmente mais densa do que suas obras anteriores. Embora não seja um watakushi – gênero biográfico e auto-biográfico de literatura e mangá – é inexorável o fato de que o mangá condensa muito da visão de mundo do autor no período. Ao desenvolver a história da família Tenge, Tezuka nos apresenta um breve recorte da sociedade japonesa enquanto fato, não enquanto ideia – algo que só os maiores gênios são capazes de fazer. Lançado recentemente pela Editora Veneta, é uma HQ indispensável.
Na trama, a pequena Ayako Tenge é testemunha involuntária dos segredos sórdidos de sua família, que incluem assassinato, traições e incesto. Sendo a engrenagem menor e mais frágil da delicada estrutura que sustenta os privilégios da família Tenge, isso é um perigo – pois, no período de imediato pós-guerra, onde a história tem início, qualquer privilégio é um luxo de poucos. Assim, a família decide que Ayako deve suportar o fardo desse conhecimento. A punição por uma frágil combinação de informação e inocência? Ser trancafiada no porão da família por mais de duas décadas.
Ayako, eventualmente, acaba deixando o porão – mas, obviamente, não sem enormes sequelas. Nessa espécie de versão brutal d’O Enigma de Kasper Hauser, Tezuka se aproveita da perspectiva praticamente nula – não neutra – da protagonista sobre a realidade ao seu redor para construir uma arguta e aguda crítica ao Japão do período. Ayako não é uma história de heróis e vilões. É uma história que trata sobre a verdadeira natureza da guerra, conforme examinada pelas suas consequências: a depravação moral daqueles capazes de tudo por um privilégio a mais; das forças imperialistas que agem sob a égide hipócrita de uma democracia pervertida; da “moral”, dos “bons costumes” e da “segurança nacional”, alguns dos mais velhos – e, infelizmente, eficazes – gritos de guerra dos opressores.
Da mesma forma em que a narrativa se passa em diversos momentos históricos, a trama também se divide em inúmeras camadas – no entanto, é difícil entrarmos em detalhes sem entregar aspectos preciosos da trama. E, ademais, isso não é tão importante quanto compreender e assimilar o subtexto aqui. Voltemos às características de Tezuka como mangaka.
Em Ayako, algumas diferenças sensíveis saltam aos olhos do amigo leitor acostumado às suas obras mais infanto-juvenis, como Astro Boy: o traço, de forma idiossincrática, é tão diferente que parece se tratar de outro desenhista; por outro lado, ainda é absolutamente distinto em todo o estilo que Tezuka pode oferecer. Isso, claro, é deliberado – da mesma forma que na COM Tezuka permitia aos artistas experimentar, aqui também o autor busca novos estilos e traços, para melhor representar suas novas perspectivas. Dessa forma, em Ayako, vemos personagens de traços menos arredondados e de expressões mais detalhadas. O contraste dessas expressões com um gama mais ampla de luz e sombra cria uma tensão perene, mas permanente em toda a obra. Há também muito mais ousadia na diagramação dos quadros, que determina uma condução do tempo histórico e da narrativa que beira a perfeição. Variações dos quadros, em termos de formatos, ângulos e abordagem, fazem com que Ayako não seja apenas uma obra histórica e socialmente relevante – é também uma verdadeira aula de histórias em quadrinhos.
O apogeu técnico de um gênio
Não obstante, como apontamos, Ayako é o apogeu de um período tematicamente muito mais denso do autor. Como em outras obras dessa época, como Kirihito Sanka e Ningen Konchuuki, seus protagonistas já não são mais heróis incorruptíveis lutando contra as forças do mal; ao contrário, estão absolutamente imersos, como símbolos antagônicos, na prevalência das forças da corrupção – não um vilão todo poderoso, mas um mal diluído nas pequenas ações corruptas, mesquinhas e egoístas do cotidiano.
Tornando-se uma mulher-criança hipersexualizada, Ayako põe facções do seu clã em conflito, resultando em uma tragédia à lá Eurípedes – e, de certa forma, é uma obra tão simbólica para o contexto japonês do período quanto as obras dos tragediógrafos gregos o são para nós aqui no Ocidente. É um fato que os japoneses se digladiavam no período por ter que, consciente e objetivamente, ter que assimilar aspectos de cultura que eram absolutamente alienígenas para eles – ironicamente, atitude oriunda de um conceito eminentemente japonês: kogo, a voluntária submissão a um adversário superior.
Tezuka, tendo iniciado a fase adulta da sua vida nesse período de transição, acaba refletindo a pior parte – se é que existe algum bom – desses valores de conflito em Ayako: o uso do sexo como ferramenta de dominação e destruição; o pessimismo que leva ao instinto de auto-preservação, que é rapidamente pervertido em egoísmo e avareza. Todos esses aspectos encontrados em Ayako são colocados em perspectiva quando pensamos, por exemplo, no período otimista infanto-juvenil do autor: o universo “adulto” é sempre mal, amoral e corrupto, e não se pode confiar em nada, nem em ninguém, que não esteja lutando apenas por si mesmo. Dessa forma, mesmo Ayako, brutalizada e abusada, acaba se tornando um símbolo de destruição e perversão.
Ayako não é uma leitura simples e nem fácil – o que não deixa de ser um reflexo do recorte da condição humana, como dissemos no início, apresentado por Osamu Tezuka. Em nossa imaginação, nós buscamos refúgio na fantasia; nos heróis que representam aquilo que nós temos de melhor. Mas mesmo esses heróis, às vezes, sucumbem diante do peso das circunstâncias. Para muitos, Tezuka foi, de fato, um herói, cuja vida se confunde com a obra. E Ayako é uma das feridas abertas pelas quais vimos esse herói sangrar. Mesmo que apenas pela sua consciência.
Curiosamente, isso nos lembra uma citação: “Não é uma espécie de sangue derramado a consciência ferida? Através desta ferida, a verdadeira imortalidade e humanidade de um homem escorrem, em sangram para uma morte eterna. Eu vejo este sangue correndo agora.”
O nome do texto? Curiosamente, A Desobediência Civil. O autor? Ironicamente, Henry Thoreau, americano. Se os americanos tivessem ouvido Thoreau, e se os japoneses tivessem ouvido aos seus próprios, talvez não precisássemos de Tezuka, ou de Ayako.
Mas nós precisamos. Ainda.