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Autocracia – Medo motorizado!

Autocracia_ Editora Veneta

Eu não gosto de dirigir. Nem sei muito bem, na verdade. e nunca examinei isso muito a fundo, mas posso dizer que é uma fobia, de certa forma. Muita gente teme ser ferido ou perder a vida em um acidente, mas meu medo é um pouco mais particular. Meu medo é, inadvertidamente, acabar tirando uma vida. Consigo lidar com muitas coisas, inclusive com a ideia de ser ferido, mas matar alguém é uma conta no vermelho, sem volta. Sempre lutei comigo mesmo para tentar lidar com essa questão da maneira mais racional possível, porém Woodrow Phoenix, um promissor quadrinista britânico, pode ter colocado o último prego nesse caixão para mim.

Woodrow Phoenix

Woodrow Phoenix

Autocracia (Rumble Strip, 2008), publicado originalmente pela britânica Myriad Editions, foi lançado este ano no Brasil pela Editora Veneta e é uma obra contundente. Mais do que uma HQ sentimental, baseada nas experiências pessoais do autor, essa inovadora graphic novel é um manifesto. Não apenas contra a indústria do automóvel, mas contra a cultura que se criou em torno dele. Existe um mundo paralelo ao nosso, feito de bancos de couro, direções hidráulicas e dvd’s na parte de trás dos bancos, para abobalhar crianças encapetadas durante longas viagens. Nesse mundo, nós -cidadãos respeitáveis e aprazíveis – regredimos ao nosso estado natural hobbesiano, onde apenas o maior, mais forte e mais violento prevalece.

Autocracia

Lembram-se daquele velho desenho do Pateta, Motor mania? Nesta animação ele é o Sr. Walker, um homem comum e tranquilo, que ao entrar em um carro automaticamente se torna o Sr. Wheeler, um sujeito insanamente raivoso que provoca o caos pela sua falta de paciência. Uma cômica analogia ao conto de Jekyll e Hyde, onde o elemento tóxico de transformação é o carro. Autocracia basicamente nos expõe ao mesmo tema, mas existem dois fatores alarmantes sobre essa comparação: primeiro, esse desenho foi lançado em 1950, ou seja, 65 anos depois, a questão do descontrole das pessoas dentro desse mundo paralelo automotivo permanece atual. Segundo, esse descontrole não é engraçado como no desenho. Ao contrário, custa literalmente mais de um milhão de vidas todos os anos.

Autocracia_Veneta

Phoenix, a todo momento, lembra que somos criados dentro de uma cultura que venera o automóvel como símbolo de status, força e virilidade. Pense bem (e curiosamente, essa é uma reflexão que eu faço, mas que foge ao autor na obra): para a maior parte dos rapazes de classe média para cima, que vivem em cidades no mundo de hoje, qual é o grande rito de passagem para a “vida adulta”? A compra e/ou posse de um carro! Possuir um carro te torna diferente do resto da ralé. Possuir um carro maior que o dos outros o torna diferente do resto da ralé que se sobressai ao resto da ralé. Esse ciclo vicioso continua em frente, até que pessoas como eu, que não possuem carro, ou seja, a “classe” mais baixa, sejamos relegados a nos espremer nas beiradas de rodovias e calçadas esburacadas, enquanto os galantes condutores desfilam com suas reluzentes armaduras motorizadas, nos desprezando ao som de Highway Star em seu mp3 player.

Autocracia_Veneta

O curioso é que o amigo leitor deve estar pensando agora: “Ei, isso é uma resenha de HQ ou um panfleto anti-carro”? Acredite, é uma HQ, só que muito inovadora e desafiadora. Para quem está dentro da sua armadura motorizada, nós, que estamos aqui do lado de fora, não somos ninguém, e o autor nos transmite essa sensação com brilhantismo ao nos entregar uma HQ que não possui nenhum personagem ou narrativa. A obra é permeada apenas por imagens do universo habitado pelos carros: avenidas, rodovias, estradas vazias.

Autocracia_Veneta

O espaço vazio que segrega e oprime, não permitindo que nada exista dentro dele, usando como principal arma o medo perene da morte que todos nós temos ao ver esses bólidos de metal, transitando em alta velocidade pelas vias. Phoenix faz uma maravilhosa analogia ao comparar o espaço habitado pelos carros com um paradoxo quântico: são espaços vazios sempre temporariamente ocupados, ocupados por pessoas com pressa de ter pressa. Mesmo dentro dos carros, nós somos despidos de nossos corpos, restando apenas nossos egos inflados e inflamados. Não vemos pessoas, vemos obstáculos. Assim, toda vez que alguma figura humana aparece na HQ, ela não aparece na forma de um ser humano, mas em uma representação abstrata: figuras que são usadas nas placas de trânsito. Sombras vazias e estéreis.

Autocracia_Veneta

Essas visões lúgubres do mundo e da cultura do automóvel também ficam explícitas na paleta de cores monocromáticas usadas pelo autor. É curioso, porque existe uma certa ironia nessa escolha: em diversos momentos do texto, Phoenix coloca de forma irônica a maneira como os motoristas pensam, a intensidade, o ego, a insanidade legitimada por uma cultura de propagandas de suv’s e filmes a lá Velozes e Furiosos. Nós poderíamos facilmente ser levados por isso e esquecer que se trata de uma ironia, mas enquanto lemos, somos confrontados pelas imagens estéreis e cinzentas de espaços vazios de estacionamentos e rodovias, sem vida e sem brilho. A ideia de dirigir, que na cultura contemporânea é idolatrada, em Autocracia se torna angustiante e pífia, despida de toda sua volúpia.

Autocracia_Veneta

Autocracia é, de fato, uma HQ desafiadora, conceitual e tematicamente. Deve ser difícil para a maior parte dos leitores que sabe dirigir conseguir aceitar encontrar características próprias durante o texto. Também pode ser angustiante para aqueles que de alguma forma se identificam com as perdas e o medo relatados por Phoenix na obra. Eu, particularmente, quase perdi meu pai em um acidente de moto, então a obra fala diretamente a mim como pedestre.

E você? De que lado está?

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