Quando a Segunda Guerra terminou, foi criada a ONU, um acesso à comunidade global para resolver seus problemas sem uma outra pancadaria generalizada. Dentro da ONU, diversos órgãos foram criados para cuidar de temas específicos, aí incluso o famigerado Conselho de Segurança, com a presença dos cinco países mais militarmente relevantes ao término do conflito. A ideia era haver um grupo que debatesse quando era necessário, decidindo os procedimentos de qualquer tipo de intervenção militar em qualquer parte do globo. Basicamente, determinando quando eles fariam o que fosse necessário para garantir os “direitos” das pessoas envolvidas em um conflito. O que quer que se possa dizer sobre o sucesso ou o fracasso desse órgão, trata-se, objetivamente, de um grupo de pessoas que você não conhece, nem nunca viu, com o poder de decidir se é necessário ou não mandar sua cidade pelos ares. Tudo para garantir os seus “direitos”.
Desde a criação do Superman como o “herói do povo” em 1938, os super-heróis sempre foram uma forma de catarse e/ou extrapolação da realidade. Uma hora ou outra, alguém ia trazer ao mundo das máscaras e capas a ideia de como seria um grupo de poder quase ilimitado, agindo arbitrariamente para nos salvar de ameaças externas ou internas, mesmo que isso custe a destruição de algumas cidades inteiras e alguns milhares de vidas. Pois bem, depois de tentativas mal sucedidas de outra editoras (uma delas extinta, felizmente), a Panini relançou agora no Brasil o encadernado do grupo criado pelos geniais Warren Ellis e Bryan Hitch, explorando essa assustadora ideia: The Authority.
O grupo foi criado a partir dos restos de outro grupo, o Stormwatch, um produto típico e característico do selo Wildstorm. O título seguia a linha de sucesso (ao menos de início) proposta pela Image de Todd McFarlane e Jim Lee no início dos anos 90: descerebrado, com ação e violência exageradas, mulheres hipersexualizadas e cores chapadas, esse modelo se desgastou rapidamente, capengando já no final da década, junto com as próprias editoras, e sustentando-se apenas nos títulos de maior sucesso, como Spawn. Assim, era hora de novas reformulações, ou enfrentar a degola. Para a felicidade dos fãs da série, o gênio em ascensão Ellis, no seu período mais prolífico, assume o título a partir do #37, então uma pequena revolução aconteceu. Não que o Stormwatch ainda tenha ido muito longe, mas os sobreviventes do grupo migraram para a visão mais radical do roteirista.
O mais interessante sobre a proposta política explorada por Ellis em The Authority, nos dois primeiros arcos apresentados neste primeiro volume, Sob o Círculo e Transnaves, é que eles foram lançados em 1999, ou seja, antes dos ataques de 11/9 em Nova York. Então, quando vemos o grupo comandado por Jenny Sparks, cuidadosamente batizada de “o espírito do século XX”, invadindo deliberadamente nações estrangeiras ou simplesmente apagando-as do mapa, sob a desculpa de “defender a humanidade”, é inevitável celebrar a genialidade e a capacidade de observação política do autor. De certa forma, Ellis capturou o zeitgeist perfeito do mundo real, onde um planeta política e culturalmente polivalente já havia dado a entender que o neorrealismo estava correto, e no final das contas um governo mundial era praticamente impossível. Inclusive no mundo dos super-heróis, onde o posicionamento passivo e reativo de super-grupos – como a Liga da Justiça – não se sustentava em um mundo onde calamidades surgiam na mídia moderna todos os dias a granel.
A comparação com a Liga da Justiça não é feita levianamente. O Authority de Ellis é, na verdade, uma metáfora sócio-política da Liga, mas sob a forma de uma faculdade crítica ostensiva, nem um pouco sutil. O escritor proporciona um excesso de liberdade de ação ao seu super grupo que acaba se tornando muito mais natural e fluido, diante do prisma da realidade representado por órgãos como o Conselho de Segurança da ONU e da Guerra do Iraque perpetrada por Bush. Pois dentro do contexto dos super-heróis, exige muito mais imaginação e esforço de crença para acreditar que um homem capaz de devastar cidades inteiras de criminosos sozinho, como o Superman, vai se limitar a sorrir e mandá-los para a cadeia, do que acreditar que ele vai de fato devastar essa cidade sozinho, garantindo a “segurança” dos “inocentes”, como o autor nos mostra nos dois arcos do encadernado. É a revolução dos super-heróis de Moore e Miller nos anos 80 levada ao extremo por Ellis no final dos anos 90. Se os Watchmen de Moore estavam a sombra da sua máxima opus Quis custodiet ipsos custodes?, o Authority de Ellis diz simplesmente “Foda-se essa porra toda.”
Isso fica muito bem representado na subversão sutil representada pelos componentes do grupo. Jenny Sparks, a líder, é uma pessoa profundamente dedicada a defesa e salvação do mundo. Mas sua posição, que deveria pressupor um humanismo acentuado, acaba revelando na personagem um utilitarismo que beira a frieza. Matar alguns milhares para salvar milhões? Sem problema. Interferir diretamente na soberania dos países para garantir a “segurança” do planeta? É com ela mesma. Sparks é uma espécie de mistura de Kenneth Waltz, teórico do neorrealismo, com Peter Singer, filósofo utilitarista: fazer o que é necessário para “garantir o bem maior”, e a única maneira é possuindo um poder de fogo superior a todos os outros.
Falando nesse poder de fogo, ele cobre todas as bases: tem magia (o Doutor), tem tecnologia (a Engenheira), tem agentes sutis (o Meia-Noite e Swift) e tem força bruta (Apolo e Jack Hawksmoor). Além dos protagonistas, há também o veículo/quartel-general deles, a Balsa. Um recurso criativo e divertido criado por Ellis para facilitar o deslocamento do grupo que age em escala global, a Balsa flutua pelo chamado “plano devachânico”, estando ao mesmo tempo em todos os lugares e nenhum. Todos os adidos são usados com eficiência por Sparks na defesa do mundo, mas claro que, se o poder de fogo é imenso, os danos colaterais também são. Apolo, um análogo do Superman, é usado como uma bomba nuclear; onde ele luta, nada fica em pé. Isso importa para o Authority? Desde que o resultado pretendido seja alcançado, nem um pouco. Se nós aplicássemos a escala F, criada por Adorno para medir níveis de fascismo, individualmente em cada personagem, talvez os resultados não fossem grande coisa. Mas como grupo, eles estourariam a medida.
Apolo, aliás, que também apresenta outra das deliciosas subversões colocadas por Ellis nos seus personagens. Embora isso só tenha se tornado explícito posteriormente, na fase do Authority comandada por Mark Millar e Frank Quitely, Apolo e Meia-Noite, um óbvio análogo do Batman, já dão indícios nesse primeiro volume do seu relacionamento homossexual, o que se pretende ser uma singela afronta a esses ícones da virilidade americana. Como colocar John Wayne e Clint Eastwood para dar uns amassos. Mas como o foco desses primeiros arcos é mais político e militar, esse é apenas um detalhe implícito.
Outros não são. Junto com a pintura étnica deliberadamente preconceituosa e maniqueísta de Kaizen Gamorra, terrorista enfrentado pelo grupo no primeiro arco, e a “nobre” cultura europeia imperialista de estrupro do déspota de uma Terra alternativa, nos tornam muito clara a mensagem de Ellis: a visão que a cultura ianque-europeia sustenta de outras culturas ao redor do mundo, e a política ultraconservadora escolhida por americanos e europeus para lidar com elas – mantê-las submissas a sua própria visão de mundo ou destruí-las. Um cara como Fukuyama, teórico ultraconservador moderno, ou apenas um racista imbecilizado como Bolsonaro, devem ler Authority aplaudindo as escolhas do grupo e a visão propositalmente dualista da HQ de pé, enquanto Ellis ri em algum lugar.
Toda essa profusão de detalhes não seria possível sem a caneta precisa de Brian Hitch. O desenhista, conhecido pelos seus atrasos e a demora na conclusão das páginas, aqui já nos demonstrava porque vale a pena espera-lo. Cada página é um quadro, onde as minúcias e detalhes pontuais estão espalhados as pencas, o que dá a proposta narrativa ousada de Ellis toda a dimensão e profundidade visual que ela merece. Seja nas ilustrações de combates apoteóticos em larga escala, seja nos combates individuais regados a tripas e sangue, ou tão somente das expressões e emoções dos personagens, seu desenho – naquela época, com uma influência maior de Alan Davis – é sempre sóbrio e claro e, quando necessário, épico e ostensivo na mesma medida. Desde quando Authority foi lançado, Hitch mantém o mesmo padrão cinematográfico e evoluiu no detalhismo realista, observado também no seu maior sucesso Os Supremos. Não é exagero dizer que ele talvez seja um dos melhores desenhistas da atualidade, fazendo do relançamento de Authority uma boa oportunidade de conferir o seu talento*.
*(Também publicamos um vídeo onde Bryan Hitch comenta seu processo de criação da narrativa!)
Sobre o encadernado em si, alguns elogios e uma consideração. A Panini nos entrega um volume com capa cartonada e papel de alta qualidade, o que é uma decisão compreensível e acertada, porque mantém a qualidade da visualização dos quadros e, ao mesmo tempo, mantém um preço acessível. Embora a edição da Devir fique um pouco mais bonita na estante, o fato de a edição da Panini ser mais barata sem perder a qualidade de impressão é bastante piedosa com o bolso do amigo leitor. A única ressalva é que, como se trata de uma edição longe das bancas a um tempo, seria interessante se ela viesse com mais extras. O encadernado conta apenas com um board de Hitch. Mesmo assim, nada de grave e vale o preço pedido.
Authority, quando foi lançado, causou um breve abalo no mundo dos quadrinhos. Nunca antes havia sido mostrado, de maneira tão bem feita, como a existência um grupo de heróis extremamente poderosos afetaria a geopolítica do planeta. Isso nos faz – objetivamente – refletir sobre a concentração de poder nas mãos de certos grupos ou certas pessoas que existem no mundo real. Assim como muitos políticos e órgãos globais, o Authority deseja ser a mudança que torna o mundo melhor e mais seguro.
E sua mensagem é clara: nós somos a autoridade superior. Mude ou morra!