Já faz, mais ou menos, 30 anos desde que Miller, Moore e Gaiman elevaram os quadrinhos ao patamar de arte, aos olhos do grande público. Um veículo para expressão da quintessência humana, em todas as suas virtudes e vicissitudes. É um mercado também, como qualquer outra forma de arte, então é preciso se esforçar para encontrar, em meio ao genérico, pequenas maravilhas. Leia Asterios Polyp, de David Mazzucchelli, lançado aqui no Brasil em 2011 pela Quadrinhos na Cia. Você estará lendo uma dessas maravilhas.
Curioso é que Mazzucchelli é mais conhecido pela sua parceria com Frank Miller, trabalhando com personagens mainstream como o Demolidor e o Batman. Embora seja um tremendo desenhista, nada indicava que pudesse vir dele uma obra seminal dos quadrinhos como essa, e isso não são apenas nossas palavras; a HQ arrebatou prêmios Eisner e Harvey e mais por onde passou. Não é uma obra fácil, é bom salientar. A complexidade do seu desenvolvimento narrativo e gráfico pode – inicialmente – assustar o leitor, mas permita-se penetrar na obra, e encontrará em verdade uma trama singela, sobre um homem cujas convicções mais profundas são desafiadas e contestadas a todo momento,ilustrada e narrada de maneira magistral.
A trama se desenvolve de maneira não-linear em dois momentos (isso é importante, portanto, atenção): a vida pregressa de Asterios, como um renomado arquiteto conceitual, cujas obras são reverenciadas, lhe rendendo até mesmo uma cátedra na universidade de Ithaca, mas – curiosamente – jamais foram construídas. Um arquiteto de papel, como lhe chamam; em um segundo momento, narrado no presente, vemos um Asterios alquebrado e desiludido, fugindo com alguns poucos pertences de seu apartamento após um relâmpago incendiar seu apartamento, forçando-o a confrontar o mundo em uma jornada elusiva e sem destino certo. Passo a passo, vamos entendendo quem é Asterios Polyp.
É um protagonista complexo. O fato de ser um arquiteto é na verdade uma fachada conceitual para a sua verdadeira vocação: a filosofia, e é dentro das suas reflexões que ele irá se desenvolver. Tudo que existe em torno do universo de Asterios – na visão dele, tudo gira em torno da sua existência – pode ser categorizado e explicado com base em uma ideia de simetria bilateral. Tudo existe de forma dualista: bom e mau, certo e errado, belo e feio. Linhas retas e curvas. Não obstante, a trama é narrada pelo irmão natimorto de Asterios, Ignazio. Qual o propósito de um irmão natimorto? Se fosse apenas um, a própria noção de dualidade de Asterios seria uma falácia, mas, se houvesse nascido, Asterios não seria apenas um, tornando-o outra pessoa que não quem ele é. A ideia de Ignazio, que transita perenemente sobre a trama, nos expondo as verdades que o protagonista não se atreve a reconhecer ou simplesmente não consegue devido sua impetuosidade intelectual. Este é o primeiro confronto de Asterios em relação as suas convicções filosóficas.
Asterios é um platônico. Seu próprio nome é uma referência a um rei da mitologia grega que desafiou os deuses. Um idealista, no sentido de que toda a realidade pode ser encerrada e devidamente compreendida dentro desse conceito de ambivalência arrogante. Isso, obviamente, também se aplica a sua difícil relação com outros seres humanos. Ou você concorda com ele ou você está errado. Os conflitos de Asterios começam com algo óbvio, na verdade, que é o fato de que o universo não gira em torno do que sua arrogância lhe permite perceber. Quando confrontado por forças além da sua compreensão, suas convicções aos poucos caem por terra.
Essas forças são representadas por Hana Sonnenschein, uma jovem professora de arte da universidade de Ithaca. Ao se apaixonar por Hana, Asterios é traído por sua própria filosofia, pois Hana, em sua sensibilidade e aparente passividade, é o exato oposto de Asterios. Suas obras de arte são pura expressão e sentimento, sem formas perfeitas, e fogem a capacidade do protagonista de compreende-las. Asterios encontra seu yang, sem imaginar que seria justamente ela que lançaria as luzes sobre as trevas da sua arrogância. Não uso essa metáfora levianamente. Sonnenschein, em alemão, significa “luz do sol”, e também não disse que Asterios é um platônico à toa. A mensagem de Mazzucchelli é clara: Hana é a luz do sol que traz Asterios para fora das trevas de sua caverna pessoal, tal qual a famosa alegoria da caverna do filósofo grego. E o amigo leitor também já percebeu que a universidade onde ambos se conhecem também é uma referência a cultura grega, sendo Ithaca a terra lendária do rei Odisseu, protagonista da Odisséia, conhecido por ser o homem mais racional de uma guerra de mentiras, a famosa guerra de Tróia, narrada na Ilíada.
Metáforas, referências, filosofia e mitologia. A genialidade dessa obra está no fato de que tudo transcende e ao mesmo tempo complementa a narrativa, elevando a arte das HQs a um novo patamar, mas ainda trata-se de uma HQ e essa genialidade não estaria completa se não fosse representada em sua forma gráfica. Novamente, Mazzucchelli não decepciona. A diagramação das páginas é ousada e transcende em muito o modelo de storyboard básico. Cada página é uma tela em branco, que o autor usa para expor ideias, imagens e conceitos, mas nunca deixando que elas se sobreponham ou permaneçam alheias a narrativa. Pelo contrário, elas sempre complementam, pontuam e esclarecem. A presença do conceito/personagem Ignazio é sempre mais forte aqui, pois, sendo um observador externo e atemporal, visto que ele não existe, nós temos o distanciamento necessário não apenas da história e dos personagens, mas dos próprios conceitos que eles representam. Ignazio é a nossa visão global da própria HQ. Ele não simplesmente quebra a quarta parede, ele é a janela pela qual nós conseguimos observar através dessa parede.
Formas, cores, diagramação e até mesmo as fontes dos balões são parte efetiva da narrativa. Representam tudo aquilo que fica de não-dito quando alguém diz algo durante a história. Asterios, meticuloso, preciso, absoluto, racional, é desenhado em formas geométricas perfeitas. Mais uma referência a Platão, que admirava a geometria como uma ciência idealmente perfeita. Seu crânio é grande e seus olhos pequenos, indicando sua imensa capacidade racional, mas restrita percepção da realidade a sua volta. Ele e seu entorno são sempre representados na cor ciano, dando aos ambientes onde ele está um tom estéril e até desestimulante, como por exemplo seu apartamento, que não possui cores vibrantes e onde tudo está disposto de maneira geometricamente perfeita. Hana, o caos que penetra na ordem opressora de Asterios, é representada na cor magenta. Intensa, que não consome, mas cativa. Ela é desenhada em traços soltos, livres, leves e contínuos. Sua compleição é singela, mas seus olhos são grandes, indicando a sua aguçada mas discreta percepção do mundo a sua volta. A primeira coisa que faz ao ir morar com Asterios é dar cor e vida ao lugar, quebrando a esterilidade geométrica dele.
É claro que essa situação terminaria em um inevitável conflito. Hana, inexoravelmente, abandona Asterios. E aí ele começa sua jornada de transformação pessoal e refiguração intelectual. A história acompanha esse processo, que é representado por outras formas, cores e conceitos. Esse momento da narrativa e os personagens que o protagonizam, junto com Asterios, são representados na cor amarela, a cor da neutralidade que suspende os conflitos dualistas da história. Através dessa suspensão do juízo, Mazzucchelli desenvolve a transformação do personagem. Um homem inteligente, mas arrogante, que impõe a sua visão sobre o mundo a fim de restringi-lo, e assim compreende-lo segundo seus próprios termos, torna-se um homem sábio, que contempla a totalidade da existência e compreende verdadeiramente que ela não pode ser encerrada em uma percepção particular do mundo. Isso fica claro na afeição perene que Asterios desenvolve pela personalidade da personagem Ursula e sua “racionalidade esotérica”, por assim dizer.
Asterios Polyp é, na verdade, uma simples história de vida e de amor. Mas o que Mazzucchelli nos mostra é algo que às vezes nos escapa: não existem vidas ou amores simples. A existência humana é permeada por conflitos, incertezas, paixões. Embora nós possamos nos definir como seres cuja característica distintiva é a racionalidade, temos que reconhecer, para nossa própria sanidade, que somos muito mais do que isso. Para isso, também às vezes é necessário um certo distanciamento. Não apenas pensar fora da caixa. Também, eventualmente, sentir fora dela. David Mazzucchelli, em um esmero que durou 10 anos para compor essa obra, nos entrega essa bela reflexão, para que façamos o que quisermos com ela. Ela é racional e bem construída sim, mas – antes de tudo -bela.
Como diria Kallias, de Friederich Schiller: Afinal, não existe beleza na razão?