Uma das grandes criações da Era de Ouro dos quadrinhos e carro-chefe da Empire Comics, O Escapista (The Escapist) foi criado por Joseph Kavalier e Sam Clay, surgindo no meio do estouro deflagrado por aquela outra dupla de Cleveland e seu kryptoniano. Rendeu milhões e sobreviveu por décadas, adaptando-se às trocas de editoras e novas tendências dos quadrinhos… Você nunca ouviu falar deste personagem? Compreensível, já que Kavalier e Clay são criações do escritor Michael Chabon, autor do romance As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay, ambientado no fim da década de 1930 e que mostra os dois rapazes criando um super-herói que se torna sensação, na esteira do Superman. De qualquer forma, O Escapista existe sim, só está poucas camadas abaixo de outros personagens de quadrinhos que conhecemos, mas como seu próprio codinome já indica, escapar para outros níveis é sua especialidade.
As Incríveis Aventuras do Escapista (The Amazing Adventures of the Escapist) é um encadernado da Devir de quase 200 páginas, reunindo aventuras deste personagem metaficcional, originalmente publicadas pela Dark Horse. Conforme já ficou claro, a brincadeira da coletânea é situar o leitor dentro de uma trajetória editorial de vários anos, como se o Escapista e seus criadores realmente fizessem parte do nosso mundo. No final da edição, um texto esclarece isso para eventuais desinformados, mas a verdade é que a encenação serve mais a dois tipos de público. O primeiro é aquele familiarizado com a indústria dos comics e suas transformações ao longo das décadas; o outro grupo faz parte do primeiro, mas além disso também leu o livro de Chabon (aliás, obrigatório!)
Com um time criativo respeitável, a história de abertura é A Passagem da Chave, com arte de Eric Wright, adaptação direta de um capítulo do livro, mostrando Tom Mayflower assumindo o manto do Escapista e descobrindo sobre a Liga da Chave de Ouro e seus inimigos, a Corrente de Ferro. O roteiro – claro – emula a ingenuidade das origens dos heróis da Era de Ouro, com tragédias, motivações básicas e vilões bem definidos. O estilo da arte também procura este caminho, com uma narrativa um tanto parada, mais interessante para quem se lembra bem do livro.
Em seguida, uma falsa matéria do Comics Journal, detalhando a passagem do personagem pelas eras dos quadrinhos, que serve como preâmbulo para Os Libertadores, escrita e ilustrada por Howard Chaykin (American Flagg, Black Kiss). Inserindo o personagem em um contexto mais ambíguo, é uma típica história da década de 1970, perto da Era de Bronze, ainda que ela seja ambientada cerca de 40 anos antes, com um toque óbvio do clássico do cinema Casablanca. Chaykin já viu dias melhores como desenhista, mas a narrativa valoriza o conjunto.
Golpe Baixo tem roteiro de Kevin McCarthy e arte de Steve Lieber (Whiteout, que também foi publicado aqui pela Devir). O Escapista precisa fazer um escape reverso, ou seja, ser encarcerado em um presídio, para encontrar um contato da Liga da Chave de Ouro ali dentro. O estilo retrô dos desenhos de Lieber encaixam-se bem com a ingenuidade divertida do roteiro.
Seguindo uma linha mais sombria que a anterior, A Dama ou o Tigre tem roteiro de Glen David Gold, escritor de romances, mostrando o herói encontrando uma versão feminina sua e sentindo uma inevitável atração por ela. A narrativa e as cores de Paul Hornschemeier dão um toque diferente à arte do lendário Gene Colan.
Novamente um roteiro de Kevin McCarthy, desta vez contando com uma arte mais estilizada, graças ao ilustrador e animador Scott Morse. O Menino Que Queria Ser O Escapista mostra um garoto, evidentemente muito fã do herói, que sofre com bullying e vive em um lar abusivo, temática que talvez pesasse demais com outro desenhista. Simples e direta, é a HQ que talvez sintetize melhor a ideia do romance, relacionando o escapismo com a busca por uma transformação.
Em Reinar no Inferno, a estrela Brian K. Vaughan, de Ex Machina e Y- O Último Homem, coloca um dos aliados do Escapista enfrentando um dilema muito pessoal. Apesar da enorme constituição bruta, Big Al é um homem culto e genial, sofrendo com o preconceito dos outros por sua aparência, algo que a organização Corrente de Ferro vai explorar para coopta-lo. Os desenhos de Roger Petersen são simples, mas bem eficientes para o tipo de história que contam aqui.
Quem diria? Até uma figura mais alternativa como Harvey Pekar, de American Splendor, entrou na brincadeira, com Escape do Hospital. Contando com os desenhos de Dean Haspiel, colaborador de Pekar em outras ocasiões, essa HQ é uma espécie de sessão de terapia do roteirista, utilizando o Escapista como guia. Interessante e sincera, só perde pontos quando questionamos a necessidade do herói mascarado ali, já que esse roteiro poderia substituí-lo por qualquer outro personagem em outro contexto.
A Útima Cortina emula um momento do fim da Era de Prata, entre o término da década de 1960 e início da seguinte, onde os roteiristas já encaixavam temas polêmicos na rotina dos heróis, como drogas e racismo. Aqui, o Escapista se vê em um dilema envolvendo eutanásia, com roteiro de Jason Hall e novamente arte de Eric Wright.
Seguindo a linha da anterior, O Escape de Outro Homem insere o personagem em outro contexto complicado da vida real. A Guerra do Vietnã foi um assunto difícil de ignorar, marcando a cultura norte-americana em várias frentes. O texto de Chris Offutt não acrescenta muito à coletânea, mas é realmente uma tarefa árdua e inglória encaixar um super-herói em um conflito como esse. O desenho clássico de Thomas Yeates combina bastante com a narrativa de guerra, que mostra o Escapista chegando à selva para ajudar na libertação de prisioneiros americanos.
Fechando a edição, O Escapista e o Spirit é especial por ser o último trabalho de Will Eisner, que voltou ao seu detetive mascarado após décadas. Graças a um pedido da editora Diana Schutz, que escreveu um belo prefácio para a HQ, o velho mestre deu uma contribuição fantástica à metalinguagem do Escapista, com uma história curta que cita não apenas Kavalier e Clay, como personagens ocultos, mas também Michael Chabon e o próprio Eisner. Pequena no tamanho, enorme na criatividade.
No fim das contas, As Incríveis Aventuras do Escapista não é apenas um conjunto de boas histórias que vale o tempo investido – ainda que a edição brasileira fique devendo – mas também é um belo complemento para o livro de Michael Chabon, valendo também pelo exercício criativo em cima de um personagem de origem inusitada.Todas as histórias do Escapista são imaginárias, então parafraseando um certo roteirista de HQ’s residente em Northampton: “…mas todas elas não são?”.