À Moda da Casa, terror brasileiro em HQ, enoja na medidade certa!
Sim, coisas bem-feitas são muito legais. Obras primas da arte elevam o espírito humano, e nos encaminham para um desenvolvimento moral e intelectual. As belas artes devem ser celebradas como um paragono da capacidade humana para criar, refletir e transformar o mundo em algo melhor. Mas às vezes elas são simplesmente um pé no saco, e a gente precisa daquela boa e velha trasheira, bem rasteira, para dar aquela aliviada das vicissitudes da “capacidade humana”. O terror brasileiro À Moda da Casa, HQ de Julio Wong, Kiko Garcia e Ser Cabral, publicada pela editora Estronho, é uma boa pedida.
Julio Wong, cineasta de renome nos circuitos trash e B do cinema nacional, enfrenta todo tipo de dificuldade que a maior parte dos cineastas conhece – falta de financiamento, recursos, etc. Assim, ele decidiu explorar novos ares, e no meio desse caminho, encontrou outros dois dementes que não tem medo de serem felizes sendo horríveis. E nos desenhos de Kiko Garcia, um sumo de terrir, e no ritmo brutal do roteiro de Ser Cabral, conjurou uma HQ que é a mais pura ofensa à inteligência e ao bom-gosto; ou seja, pura diversão.
O quadrinho foi baseado em dois filmes que Wong conseguiu realizar, Snuff Said e Mal Passado, além de carregar uma caminhão de referências à outros clássicos do terror – trash ou não – como O Massacre da Serra Elétrica e 2000 Maniacs. O resultado não presa muito pela coerência, mas dane-se – ninguém está aqui para ganhar um Oscar de roteiro, e sim para estender todo tipo de atrocidade do jeito mais cômico possível por quase 70 páginas.
A trama – se é que dá para chamar assim – acompanha a trajetória de um punhado de personagens, incluindo uma família de canibais sádicos (que é inspirada em Massacre da Serra Elétrica, mas acaba parecendo mais Rejeitados pelo Diabo), e história sobre pretensos atores que acabam morrendo para valer na tentativa de alcançar o estrelato, sempre tendo sua dignidade devidamente ofendida antes da morte. Como todo bom trash, não existe muito tempo aqui para elaborar qualquer tipo de desenvolvimento – tudo é uma desculpa para jogar tripas na cara do leitor a cada virada de página.
O que leva, claro, a uma pegada muito mais cômica do que nauseante em si – o que é claramente um mérito de quem trabalha com esse gênero. Você quer fazer seu espectador sentir nojo, mas não o bastante para deixar a sala. Wong, que domina esse gênero de terror trash, consegue indicar o caminho para o roteiro de Cabral – nenhuma imagem é tão bizarramente gore que o amigo leitor não consiga rir dela.
Desenhos belamente horríveis
Aplausos também para os desenhos de Kiko Garcia. Sendo a HQ em branco e preto, é difícil delinear e separar tudo o que está acontecendo. Mas existe uma intencionalidade clara, que é bem contrastada nos momentos em que os diálogos são necessários. Pense, analogamente, como se fosse um filme trash mesmo – enquanto os personagens estão conversando, é um filme como outro qualquer. Quando começa a carnificina, tudo se torna uma confusão de tripas, sangue e gritos.
A pegada de Kiko é a mesma: quando a conversa acaba – e elas acabam bem rápido – os painéis são tomados por todo tipo de atrocidade cômica que o amigo leitor pode imaginar. De fato, alguns dos melhores momentos da HQ são quando essas etapas – diálogo e tripas – se intercalam, gerando momentos hilários, como o diálogo do sujeito preso para ser comido, que acaba se afeiçoando a sua captora. Doentiamente engraçado.
Esse equilíbrio mencionado que Wong domina também é demonstrado com a constante quebra da quarta parede executada pelos autores. É uma clara maneira de fazer com que o leitor, de alguma forma, saiba que toda aquela bizarrice gore não é e não deve ser séria – é mais ou menos como ir num desses parques de diversão nas suas “noites de terror”. É propositalmente tosco, e o leitor deve manter isso em mente.
No fim das contas, apesar de ser curta – como dito, tem cerca de 70 páginas – a HQ acaba tendo a extensão correta, pois esse tipo de gênero cansa rapidamente. Sendo algo trash, é mais ou menos como um salgadinho: depois que abriu, coma rápido, senão a bagaça estraga. Da mesma forma que raramente filmes trash ultrapassam seus 80, 90 minutos, Wong entendeu que uma HQ muito longa se tornaria cansativa. Mais um acerto dos autores.
A única coisa que pode pesar, novamente, é o preço – 35 Temers por uma HQ de 70 páginas pode fazer o amigo leitor pensar. Mas, da mesma forma que dissemos na nossa resenha para a Loira de Curitiba, uma editora tem que pagar suas contas – que não são poucas no Brasil – e, francamente, nós sabemos que o leitor médio gasta ainda mais com porcarias de grife gringa menos divertidas que À Moda da Casa.
Portanto, ponha sua toalha, e aguce seu paladar, amigo leitor. O jantar está servido… se você ousar.